In memoriam Miguel Otávio Santana da Silva, 05 anos.

O que nos remete a mente quando imaginamos uma infância? Quando nos referimos ao sentido da adolescência? Escola, brincadeira, família, amizades, risos e descobertas, uma farta alimentação! Aquelas casquinhas de machucados, bagunça boa! Ei, menino, ei, menina! 

O Brasil se debruça, por meio de movimentos sociais de direitos humanos, nos últimos 50 anos, em contemplar crianças e adolescentes em sua forma integral enquanto sujeitas e sujeitos de direitos, que se fortalecem na perspectiva de proteção integral nesta fase peculiar de desenvolvimento humano, rompendo com as lógicas menoristas, punitivistas e de criminalização à pobreza, permeadas até a década de 80.

O advento do Estatuto da Criança e do Adolescente (L 8069/90) tem cumprido o fundamental papel garantista de formular e executar políticas públicas para que contemplem o bem-estar em direitos da infância e adolescência dentro de suas diversidades familiar, social, saúde, liberdades, além de promulgar sobre os deveres da família, Estado e sociedade (conforme art. 227 CF/88), tipificações de violências e, a fundamental importância do Conselho Tutelar enquanto epicentro do Sistema de Garantia de Direitos (SGD).

Entretanto, há uma lacuna entre a Lei e sua efetividade enquanto um país que ainda coloniza saberes e corpos infantis, na compreensão do adulto centrismo, do patriarcado e de uma sociedade racializada que nega o racismo como fator estruturante das desigualdades sociais. Neste contexto, desde 2016, o Brasil enfrenta um aprofundamento na precarização das políticas e serviços públicos com cortes de gastos (Emenda Constitucional 95) e com uma crise nacional, após as eleições de 2018, por meio de uma política governamental que aplica um desmonte das políticas públicas na área da infância e adolescência.

Neste contexto de retrocessos, a Covid-19 se ascende no país em abril de 2020, ao ser decretado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) situação pandêmica. Em meio aos fechamentos presenciais de escolas, serviços de convivências, espaços de sociabilização, aumento do desemprego, ações de despejos e ausência de uma política digna de assistência social, concentrações de invisibilizações das violências domésticas já existentes e aumento de violências, se tornam presentes em milhares de lares brasileiros.

Em 2020, o Disque 100 teve 95,2 mil denúncias de violência contra crianças e adolescentes. Os registros corresponderam a 368.333 violações e incluem violência física, psicológica e sexual. Os dados são da Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos (ONDH).

Fonte: “Abuso sexual contra crianças e adolescentes – abordagem de casos concretos em uma perspectiva multidisciplinar e interinstitucional”, Cartilha Maio Laranja. MMFDH, 2021.

A Childhood Brasil apresenta[1] o país sendo o 2º em ranking mundial de exploração sexual contra crianças e adolescentes. Estima-se 500 mil vítimas por ano, com apenas 10% dos casos notificados, sendo mais de 3.651 pontos vulneráveis nas rodovias do Brasil com aproximadamente 75% das vítimas meninas e negras.

Estes números são a realidade de um país que viola direitos de crianças e adolescentes e não asseguram serviços de prevenção, promoção ou de proteção numa perspectiva ampliada de acesso aos canais de denúncia pelas vítimas e de mobilização social para uma eficácia no combate às violências. Tal qual a falta de investimento financeiro, estrutural e educativo nos Conselhos Tutelares, a ausência de políticas educacionais, de saúde e segurança pública, ou de comunicação televisionada ou pelas redes sociais.

A prática política é de avanços no homeschooling para ser coibida educação emancipadora, sociabilização e maior efetividade no controle dos responsáveis de crianças e adolescentes, negando possibilidades de usufruir do mundo com autonomia, mesmo que relativa. Este agravo fortalece as violências domésticas e as subnotificações dos dados.

A ausência de troca de experiências entre crianças e adolescentes acarretam sofrimentos psíquicos conforme pesquisa do Instituto de Psiquiatria da USP que investigou a saúde mental na infância e adolescência, durante este período da pandemia, e identificou sintomas de ansiedade ou depressão em 27% das 7 mil crianças e adolescentes, de 5 a 17 anos, que participaram do estudo. O isolamento social, estresses familiares, dificuldades financeiras e aumento da pobreza, ausência de esperança e o luto em todas suas dimensões: seja na perda de pessoas vítimas da doença; seja pela perda da vida como era antes da covid-19, são fatores que acentuam o processo de adoecimento mental. O medo, ansiedade, angustia são as presenças mais constantes nas vidas.

Tanto no fato saúde-doença, quanto em violências domésticas, as diversidades de gênero e sexuais de crianças e adolescentes, são fatores prevalecentes para violações, mesmo não tendo quaisquer dados oficiais que revelem as situações afirmadas aqui. E são negadas por uma política de Estado entrelaçada ao fundamentalismo religioso que se sustentam por meio das fakenews da pseudo “ideologia de gênero” criada e constituída sem aparatos científicos e reais.

Em dezembro de 2020, durante o recesso do Congresso Nacional, o Ministério da Saúde criou um “Grupo de Trabalho” que propõe revogar portarias referentes à Política Nacional de Saúde Mental, colocando em risco o funcionamento da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e o modelo de atenção psicossocial. São mudanças significativas na Política Nacional de Saúde Mental e na Política Nacional de Álcool e outras Drogas que foram apresentadas pelo Governo Federal, e revogam mais de cem atos normativos que regulam a Saúde Mental desde os anos 90. É o maior retrocesso na Luta Antimanicomial desde sua consolidação, em 1987.

Outro agravamento é o aumento significativo da pobreza. Os dados do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas (FGV), apresentam que 12,8% da população está abaixo da linha de pobreza extrema, isto é, o sustento familiar é apenas de R$ 246 por mês. Com piora na desigualdade após instabilidades do Auxílio Emergencial do Governo Federal, que durante o início da pandemia, forneceu R$ 600 mensais a mais de 55 milhões de pessoas com baixa renda.

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatistica (IBGE) divulgou em abril de 2021, que desde o início da pandemia, o número de pessoas sem emprego no Brasil aumentou 16,9%, e teve ainda um acréscimo de 2,1 milhões de pessoas em busca de trabalho, segundo o Instituto. Atualmente, 58 milhões de pessoas correm o risco de deixar de comer por não terem como comprar alimentos. São 27,7% da população que está em uma situação de insegurança alimentar grave ou moderada, de acordo com estudo feito pelo grupo Food For Justice. Paralelo, ao aumento de 11 bilionários brasileiros indicados pela revista Forbes, em que 66 no Brasil pessoas acumulam o equivalente a US$ 220,00 bilhões.

A contradição é explicita e a história brasileira nos remete, também, em uma feminização da pobreza, pois há aumento das famílias compostas por crianças e adolescentes sendo chefiadas por mulheres, devido a situações de violências domésticas e/ou abandono paterno. 

Famílias periféricas negras ainda são reflexo do colonialismo que reforça a ideia de trabalho para crianças e adolescentes como única forma de combate à pobreza e não em políticas assistenciais, educativas e renda, na compreensão da pobreza como mecanismo estruturante da sociedade moderna, tal qual o racismo. Segundo relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), o mundo tem ao menos 160 milhões de crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil, outros 8,9 milhões correm o risco de ser vítima dessa exploração até o ano de 2022. E, infelizmente não há como mensurar o trabalho infantil e análogo ao escravo para crianças e adolescentes, pois não temos dedos oficiais desde 2018. Na época, eram em torno de 2 milhões de crianças e adolescentes em situação de trabalho explorado.

As violências policiais não cessam. De 2017 a 2019, policiais mataram cerca de 2.215 crianças e adolescentes, de acordo com os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Acompanhamos inúmeros casos de “balas achadas” que se adentram ruas e casas de famílias negras neste período pandêmico, matando adolescentes negros, vítimas de uma política de combate às drogas fracassada. 

A drástica situação na Chacina do Jacarezinho (06/06/2020), realizada pela Delegacia de Proteção de Crianças e Adolescentes (RJ), é o reflexo da política de genocídio contra a juventude negra. Quando a sociedade é orientada a permanecer em casa no isolamento social, a casa se torna o principal local de assassinato por aqueles que deveriam proteger os mais vulnerabilizados.

Em julho de 2021, foram mais de 19 milhões de brasileiros e brasileiras contaminadas pela Covid-19, sendo 530 mil vidas perdidas. Vivemos um descontrole consentido pelo poder público, pois não há uma política efetiva de enfrentamento a pandemia já que a principal liderança do país compreende a Covid-19 como uma “gripezinha”. Assim, o número de internações de crianças e adolescentes com Covid-19 disparou em todo o Brasil. 

Dados do InfoTracker, mostram um crescimento médio de 24% nas internações de crianças e adolescentes com covid-19. A exemplo explicativo, no final do ano passado, 128 crianças entre 0 e 4 anos eram internadas por dia, em média. Em fevereiro, foram 171 por dia, um aumento de 34% para esta faixa etária. Entre crianças de 5 a 9 anos, o aumento nas internações por Covid-19 foi de 15% no mesmo período. Dos 10 aos 14 anos, o aumento foi de 7%. Desde o início da pandemia, 779 crianças com até 12 anos morreram da doença, no Brasil. Deste total, 24% das mortes e 22% das internações ocorreram nos últimos três meses, segundo dados do DataSUS. Fato é que inúmeras regiões do país retornaram as atividades da administração pública e privada, sem plano nacional de vacinação em massa, expondo milhares de crianças e adolescentes como cobaias do negacionismo estatal. 

As sequelas da pandemia Covid-19 são, até então, imensuráveis. Não se trata dos impactos causados pela doença apenas no corpo físico-biológico. Os impactos sociais serão sentidos nos próximos anos. O Brasil tem aprendido por meio da dor o que fazer diante de uma crise sanitária e o primeiro aprendizado é radicalizar a defesa das conquistas de direitos para o exercer democrático de um povo que está em luto e luta. Uma luta sem tréguas. Não há um meio do caminho para resgatar a esperança de infâncias e adolescências perdidas em mentiras, ao abandono na precariedade das políticas públicas, na desesperança de um futuro incerto diante de instituições em ruinas.

Precisamos estar atentas e fortes, bem como resgatar a essência dos povos originários que conceberam e cuidaram de nossa mátria com a avidez de um recém-nascido ao leite materno. Defender o Brasil é olhar em cada anseio de amargos de crianças e adolescentes que nos clamam por um segundo de paz. É dar sentido a esperança enquanto verbo de Esperança Garcia à Paulo Freire. 

Perdemos muito, as ausências são as presenças mais reais e temos um desafio diante de tantas linhas que poderíamos soprar e apagar de nossa história. Afinal, precisávamos passar por tanto? Num mundo habitável novamente, somente se infâncias forem livres, se os saberes diversos puderem se manifestar sem um grito de dor. 


[1] Fonte: https://observatorio3setor.org.br/noticias/500-mil-criancas-sao-vitimas-de-exploracao-sexual-no-brasil/.