Iniciativa comprometida em produzir e sistematizar informações referentes aos direitos humanos no contexto da pandemia do Coronavírus no Brasil, o Observatório de Direitos Humanos – Crise e Covid-19 vem a público comunicar seu posicionamento sobre o relatório final da #CPIdaCovid.

Na quarta-feira, 20 de outubro de 2021, foi apresentado o relatório final da CPI da Covid-19, destacando as autoridades públicas e os agentes privados responsáveis pelo recrudescimento do quadro pandêmico que resultou, até hoje, na morte de mais de 600 mil brasileires. O documento é fruto de Comissão Parlamentar de Inquérito instaurada no Senado em abril de 2021 e presidida por Omar Aziz e sob a relatoria do senador Renan Calheiros, para a investigação de violações e omissões nas ações do governo federal do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) durante a pandemia de covid-19 no Brasil, principalmente no que se refere ao agravamento da crise sanitária no Amazonas com a ausência de oxigênio para os pacientes internados e outras ilegalidades nos processos de licitações e contratos no contexto da pandemia.

Após seis meses de trabalho, o Senado se manifestou indicando que os indiciamentos dos investigados têm relação com o negacionismo em relação ao vírus e às vacinas, contribuindo ao aumento do número de mortos no Brasil; com as suspeitas de corrupção nas negociações para a compra de vacinas pelo Ministério da Saúde; e com as mortes que teriam sido provocadas pelo uso de tratamentos sem respaldo científico contra a covid-19.

Além de autoridades públicas (incluindo ministros, ex-ministros e parlamentares) e agentes privados (a exemplo dos representantes da empresa Davati no Brasil – Cristiano Carvalho e Luiz Dominguetti – e dos donos da empresa Prevent Senior, Fernando Parrillo e Eduardo Parrillo), o próprio presidente Jair Bolsonaro é indiciado no relatório apresentado pelo senador Renan pelos crimes de prevaricação; charlatanismo; epidemia com resultado de morte; infração a medidas sanitárias preventivas; emprego irregular de verba pública; incitação ao crime; falsificação de documentos particulares; crimes de responsabilidade (violação de direito social e incompatibilidade com dignidade, honra e decoro do cargo); crimes contra a humanidade (nas modalidades extermínio, perseguição e outros atos desumanos). Neste ponto, é interessante destacar que o relatório da CPI da Covid-19 respalda não apenas eventuais denúncias a serem oferecidas em âmbito interno, mas também oferece subsídios às denúncias já oferecidas em organismos internacionais, como o Tribunal Penal Internacional. 

Além dos indiciamentos, o relatório propõe alterações legislativas, com vistas a coibir crimes cometidos em função da situação de calamidade pública na saúde; preservar a memória das vítimas da covid-19 e o reconhecimento do trabalho de profissionais da saúde; garantir renda aos “órfãos da covid-19”; facilitar a concessão de auxílio-doença e aposentadoria por invalidez aos gravemente sequelados pela covid-19;  aprimorar a gestão da saúde, para que o Sistema Único de Saúde (SUS) atue “em observância de práticas cientificamente comprovadas”; aprimorar os meios de fiscalização de repasses de recursos federais, especialmente aqueles no âmbito da saúde.  Além disso, recomenda a melhora da fiscalização da atuação das Organizações Sociais de Saúde (OSS) e a realização de planejamento de estratégias de saúde direcionadas às comunidades quilombolas.

Trata-se de um documento histórico que merece ser lido como resultado do trabalho do Senado Federal mas, sobretudo, como produto da pressão da sociedade civil, da imprensa e de especialistas que durante todo o período de funcionamento da Comissão aportaram conteúdos para o trabalho agora apresentado. Em maio de 2021, o Observatório de Direitos Humanos – Crise e Covid-19, enviou um documento à CPI da Covid-19 ¹, indicando as perguntas sobre a gestão do governo federal durante o enfrentamento da pandemia da Covid-19 e interrogando, por exemplo:

  • Por que o governo federal boicotou a política de isolamento social e buscou limitar as ações dos governos estaduais e municipais na restrição da circulação nas cidades? 
  • Faltou vacina no mercado internacional ou faltou empenho do Brasil na compra junto aos laboratórios dos outros países? 
  • Quais interesses conduziram as negociações com os principais países produtores de insumos tecnológicos para as vacinas? 
  • Por que o governo optou pela aspereza e pela recusa do diálogo com a China, por exemplo? 
  • Por que o Brasil não construiu um rastreamento do vírus desde os primeiros meses da pandemia? 
  • O Brasil tinha condições de ter um desempenho melhor em relação a distribuição de respiradores e habilitação de leitos clínicos e de terapia intensiva? 
  • O que justifica a atuação do governo, de suspender o auxílio emergencial e depois reduzir a menos da metade, além de cortar a verba destinada a programas como Bolsa Família e Minha Casa Minha Vida, indo totalmente na contramão da solução para o aumento do desemprego e da fome no país?

Nem todas estas indagações foram suficientemente respondidas, porém, do que acompanhamos pelo trabalho e pelos documentos apresentados à CPI, resta evidente que o Sr. Jair Bolsonaro foi o principal responsável pelo excesso de mortes durante o pico de contaminação durante a pandemia de covid-19; que não se tratou apenas de incompetência mas, de má fé e crueldade; que as ações do governo federal foram dolosas e que concorreram para a construção do excesso de mortes e de agravamento da pandemia e dos seus efeitos negativos entre nós.

Dentre os aspectos importantes apontados pela sociedade civil e ainda não refletidos no texto final sublinhamos a denúncia do presidente da República pelo crime de genocídio nos termos formulados  pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), ainda em 2019, e reafirmados em agosto de 2021 numa nova manifestação ao Tribunal Penal Internacional (TPI)². Trata-se de uma denúncia séria, consistente e juridicamente bem fundamentada como tem assegurado especialistas em direito penal internacional e ativistas de direitos humanos de todo o mundo ³.

Todavia, ainda que se ressalte neste documento ausências verificadas no relatório final da CPI, entendemos que as denúncias a serem encaminhadas à Procuradoria-Geral da República (PGR) e para os demais órgãos responsáveis devem ser levadas muito a sério posto que referem-se a violação de direitos fundamentais básicos de toda a população brasileira, tais como o direito à vida e à saúde, e à omissão em face das orientações científicas de autoridades sanitárias de caráter mundial, a exemplo da Organização Mundial de Saúde. No que se refere ao presidente Jair Bolsonaro, cabe à PGR, na figura do procurador-geral, Augusto Aras, se manifestar sobre o oferecimento ou não de denúncias e não esconder-se na protelação para aguardar o fim do mandato presidencial. 

Numa emergência sanitária como a que vivemos, a responsabilização precisa ser realizada, com respeito às garantias individuais e ao devido processo legal, mas também considerando a relevância dos temas apurados e garantindo a celeridade nas apurações. É muito preocupante o discurso de que haveria entre altas autoridades da República disposição para um grande acordo que engavetará o trabalho extenuante que temos feito para lutar por verdade, memória e justiça para  as vítimas de Covid-19 no Brasil.

O Observatório de Direitos Humanos – Crise e Covid-19 já encaminhou à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e às relatorias especiais das Nações Unidas relacionadas à temática uma manifestação sobre a gravidade dos fatos ocorridos no Brasil e sobre a necessidade de medidas internacionais para salvaguardar os direitos do povo brasileiro. No mesmo sentido o Observatório também acompanhará de perto cada passo dos desdobramentos do trabalho da CPI da Pandemia e representará junto às instituições cabíveis para fiscalizar os encaminhamentos até aqui já indicados. Não descansaremos enquanto todos os itens do relatório não forem devidamente apreciados pelas autoridades responsáveis e até que o debate sobre as responsabilidades seja feito cuidadosamente.

#NãoEngavetAras #observatoriodhcovid19

¹ Para acessar o documento produzido pelo Observatório, consulte o link: http://observadhecovid.org.br/pesquisas/perguntas-sem-respostas

²  Dossiê internacional de denúncias dos povos indígenas do Brasil 2021, Brasília:Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), 2021.Disponível em: https://apiboficial.org/files/2021/08/DOSSIE_pt_v3web.pdf

³  Sobre a intencionalidade das medidas federais durante a pandemia e sobre o caráter sistemático das medidas de disseminação por parte do governo federal ver: CEPEDISA, Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário. A linha do tempo da estratégia federal de disseminação da Covid-19. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, 28 de maio de 2021. Disponível em: https://cepedisa.org.br/