O que é omissão?

Em linhas gerais, a omissão consiste em “deixar de fazer algo” ou “não agir, quando se esperaria que o fizesse”. 

Do ponto de vista ontológico, esse termo é definido como a “não realização voluntária de uma ação final daquele que tem capacidade para tal, ou seja, aquela que o sujeito poderia realizar na situação concreta na qual se encontrava”. 

Para o mundo do direito, todavia, esse conceito ganha significado a partir da designação de quais omissões são juridicamente relevantes, isto é, aquelas que frustram expectativas previstas em normas jurídicas. À vista disso, a omissão juridicamente relevante pode ser definida como “a ausência de um comportamento – voluntária e consciente – exigido (e por isso esperado) pela norma jurídica”. 

Nessa conformidade, e trazendo para o âmbito do Direito Penal, o artigo 13, § 2º do Código Penal prevê que a omissão é “penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado”. Dessa maneira, o dever de agir incumbe a quem “a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado”. 

Destarte, os crimes dessa natureza podem ser classificados como crimes omissivos próprios ou como crimes omissivos impróprios, também denominado como comissivos por omissão. O primeiro é aquele em que o agente deixa de realizar determinada conduta, embora tenha obrigação jurídica de fazê-lo, configurando como abstenção da conduta devida, quando podia e devia realizá-la, independente do resultado. De modo que o crime omissivo próprio decorre da inatividade em si e, portanto, consiste em um crime de mera conduta, como verifica-se na omissão de socorro (Código Penal., art. 135), onde é descrito o ato de omitir sem indicar o resultado. Enquanto o segundo consiste na omissão na qual o agente produz um resultado, devendo “responder não apenas pela omissão, mas também pelo resultado desta, a que estava, juridicamente, obrigado a impedir” e, por conseguinte, exige “sempre uma lesão ao objeto jurídico que representa o bem tutelado pela norma”, como ocorre no homicídio por infração pela mãe do dever de alimentar o próprio filho (Código Penal., art. 12 e Código Civil., art. 384).

Para o direito internacional, ainda, a omissão ocorre quando “o Estado (ou seus agentes) se omitir ou deixar de praticar um ato requerido pelo DIP, em relação ao qual ele tinha o dever jurídico de praticar”.

O Estado pode ser responsabilizado por omissão?

Tratando-se em termos de Direito Administrativo, ou seja, nas situações em que o Estado ou a Administração Pública entra em cena, o artigo 37, §6º, da Constituição Federal prevê a responsabilidade objetiva do Estado quando este causar um dano a terceiros através de atos praticados. Isto significa que, praticada uma conduta por um agente estatal, e essa conduta tenha ligação com um resultado prejudicial para o cidadão, o Estado tem responsabilidade, mesmo que não tenha culpa.

No entanto, no caso dos atos omissivos, aplica-se a responsabilidade subjetiva do Estado, na qual atribui a culpa ao serviço público nos casos em que este “(a) não funcione, quando deveria funcionar; (b) funcione atrasado; ou (c) funcione mal”, sendo configurado a omissão danosa nessas duas primeiras hipóteses. Nessa toada, nos casos de omissão deve-se demonstrar não apenas a conduta, o dano e a ligação entre ambos, mas também a presença da culpa, na modalidade de negligência, imprudência ou imperícia.

Deste modo, a negligência, imprudência e imperícia são modalidades de omissão, que apesar de bastante similares, possuem diferenças importantes entre si. Em linhas gerais, negligente é quando agiu por desleixo; imprudente, quando não agiu de forma proba e meramente confiou na sorte; imperito é quando não previu a possibilidade do dano.

Sendo assim, o que se observa é que são fatos danosos que poderiam ter sido “evitados ou minorados se o Estado, tendo o dever de agir, se omitiu“. Assim, a responsabilidade atribuída ao Estado por omissão ocorre quando há o dever de agir e a possibilidade de agir para evitar o dano quando corresponder a uma conduta exigível do Estado e que seja possível, o que deverá ser analisado em cada caso concreto. 

Outrossim, é importante salientar que para estabelecer a responsabilização estatal no que tange aos atos omissivos é necessária a presença de uma omissão antijurídica, a qual demanda que o Estado ou suas entidades descumpram uma obrigação legal expressa ou implícita, em conformidade com o artigo 186 do Código Civil.

Analisado, portanto, a omissão no âmbito do Direito Penal e no Direito Administrativo, da mesma forma, no plano internacional observa-se que um Estado pode ser responsabilizado quando se omitiu em agir. O Draft article elaborado pela Comissão de Direito Internacional da Organização das Nações Unidas (ONU) acerca da responsabilidade internacional do Estado prevê que o país deve ser responsabilizado por um ato internacionalmente ilícito, cujos elementos são: (a) conduta – por ação ou omissão; (b) atribuição ao Estado dessa conduta; (c) violação a uma obrigação internacional do Estado. 

O sistema interamericano, por sua vez, aborda essa temática a partir dos artigos 1.1 (Obrigação de respeitar os direitos) e 2 ( Dever de adotar disposições de direito interno) da Convenção Americana de Direitos Humanos. Nesse ínterim, a responsabilidade internacional é imputada ao Estado com base em “ações ou omissões de qualquer de seus órgãos ou poderes, independentemente de sua hierarquia, que violam os direitos reconhecidos na Convenção”. 

A omissão no contexto brasileiro e de pandemia do Covid-19

No contexto pandêmico, a salvaguarda de direitos ganha especial importância. De modo que cabe ao Estado atuar de forma diligente para combater os efeitos do COVID-19 e proteger sua população, sobretudo, no que diz respeito ao direito à saúde e à vida. 

Todavia, o que se tem observado é que o Estado brasileiro mostra-se aquém dos parâmetros internacionais e de sua Carta Magna ao praticar inúmeras omissões diante da atual conjuntura. A falta de incentivo na adoção de precauções para evitar a propagação da COVID-19, em conjunto com condutas e falas que desencorajam o uso de máscara e do distanciamento social, o retardamento do enfrentamento do colapso que ocorreu em Manaus e a demora para a aquisição de vacinas contra o COVID-19 são exemplos de ações e omissões lesivas, que tiveram expressivos reflexos sociais.

Em decorrência dessas omissões, foi registrado no Brasil o crescimento de ocupação de leitos de UTI tanto em hospitais públicos quanto em privados, além de alta taxa de infectados e de mortalidade por Covid-19. Desde o início da pandemia até o início de julho de 2021 foram contabilizadas mais de 533 mil mortes no território brasileiro, números expressivos que vêm chamando atenção de autoridades como o diretor-geral da OMS, Tedros Ghebreyesus, que asseverou que “A situação é muito séria, muito preocupante. As medidas de saúde pública que o Brasil deveria adotar deveriam ser agressivas – enquanto, ao mesmo tempo, distribui vacinas”. 

No entanto, dados apresentados em julho de 2021 atestam que 83.794.712 brasileiros receberam a 1ª dose, isto é, apenas 39,57% da população brasileira dispôs do seu direito de ser vacinado com primeira dose. Contudo, as porcentagens dos indivíduos vacinados que receberam a 2ª dose é ainda menor. Foram registrados 28.108.088 de doses aplicadas, o que equivale a 14,44% da população brasileira. Tais índices decorrem do atraso nas compras de doses e da falta de celeridade nas aplicações. Destaca-se, ainda, que inúmeros e-mails enviados pela farmacêutica Pfizer, com a finalidade de fornecer vacina, foram ignorados pelo atual governo, que está sendo investigado pela denúncia de faturamento na compra de doses da Covaxin, isto é, a vacina mais cara comprada pelo Estado brasileiro.

Vale destacar que na primeira metade de janeiro de 2021, o Município de Manaus, capital do Amazonas, registrou uma das situações mais severas em relação à pandemia no país, chegando ao colapso. Aponta-se que o dia com maior número de infectados durante a pandemia, no dia 14 de janeiro de 2021, chegou a contabilizar 3.816 pessoas, e levou a 254 internados só na cidade. Não obstante, só nos 14 primeiros dias do ano, morreram metade do contabilizado de mortes, em comparação com o ano de 2020 inteiro. 

Durante a Comissão de Inquérito Parlamentar que investiga acerca da atuação do Governo Federal no combate à COVID, foi levantado um ofício do governo municipal de Manaus solicitando medicações como azitromicina e ivermectina em meio ao colapso devido à falta de oxigênio no estado, mas principalmente no município de Manaus. Estes medicamentos não têm comprovação científica de eficácia contra o vírus mas o pedido para envio de novo estoque pelo governo federal foi acatado, ao passo que, na primeira metade de janeiro, os estoques de oxigênios, imprescindíveis para a manutenção da vida dos pacientes internados por covid, chegaram a zerar.

Ainda nessa ocasião, o então secretário de saúde do governo federal, Eduardo Pazuello, esteve no Amazonas e em entrevista cobrou o uso do “tratamento precoce” contra a covid-19 que inclui medicamento cloroquina, que também não tem comprovação científica de eficácia contra a COVID.

Fica perceptível, portanto, que direitos fundamentais como o acesso à saúde (Constituição Federal,. Art. 196) e o direito à vida (Constituição Federal,. Art. 5) estão sendo infringidos constantemente mediante ações e, especialmente omissões estatais.

População em situação de vulnerabilidade

É cediço que das omissões governamentais todos são vítimas, não obstante, os indivíduos que pertencem aos grupos vulneráveis são os que mais sofrem. Afinal, a pandemia acentua cada vez mais as desigualdades sociais que antes já eram significativas no Brasil. 

Embora a Comissão Interamericana de Direitos Humanos tenha recomendado na Resolução 1/2020, com a temática “Pandemia e Direitos Humanos na América”, que os “Estados da região devem aplicar perspectivas intersecionais e prestar especial atenção às necessidades e ao impacto diferenciado dessas medidas nos direitos humanos dos grupos historicamente excluídos ou em especial risco”, pouco foi feito pelo governo brasileiro para amparar essas pessoas. 

Conforme informações levantadas em 2020 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), há cerca de 222 mil pessoas vivendo em situação de rua no Brasil, o que aponta um aumento de 140% em relação aos dados entre 2012 e março de 2020. Números que tendem a aumentar com a pandemia de Covid-19. Todavia, nenhuma orientação foi dada pelo governo federal a essa população acerca dos cuidados e métodos que buscam dirimir o risco de contaminação e transmissão do vírus, sem embargo de que essas pessoas são naturalmente suscetíveis à infecção e podem correr maior risco de exposição em razão das condições em que se encontram.

Destarte, uma das principais recomendações da OMS para reduzir a  disseminação do vírus é o isolamento social. Contudo, o déficit no fornecimento de abrigos se agravou na pandemia. O número de vagas não foi ampliado e tampouco projetos de moradia foram elaborados, enquanto as remoções continuaram acontecendo. Além disso, a obtenção do auxílio emergencial é dificultada para pessoas em situação de rua, uma vez que estes não possuem na maioria das vezes a documentação necessária para adquirir esse benefício. 

Outro grupo vulnerável que sofre em razão da falta de possibilidade de isolamento social são os indivíduos privados de liberdade, tendo em vista que convivem em  espaços pequenos e superlotados por prolongado período de tempo, o que além de facilitar a disseminação do vírus, dificulta o acesso aos serviços básicos, de higiene e de saúde. Ademais, dentre estes indivíduos há dois grupos de pessoas que estão mais suscetíveis aos males trazidos pelo COVID-19, os idosos e pessoas com condições médicas pré-existentes, tais como diabetes mellitus, insuficiência renal, doenças cardiovasculares e imunodeficiência. 

Segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em fevereiro deste ano houve o aumento de 17,6%, isto é, de 334 registros de óbito de pessoas privadas de liberdade e servidores, em relação ao mês anterior. No total, foram registrados 67.262 casos confirmados de contaminação pelo vírus no cárcere, sendo 49.946 entre indivíduos presos e 17.316 entre funcionários. Enquanto no socioeducativo, 1.716 adolescentes e 5.781 servidores foram infectados, sendo 41 o número de mortes por Covid-19 nessas instituições. Sublinha-se que em dezembro de 2020, o Brasil era o segundo país com mais casos de coronavírus entre a população privada de liberdade ao registrar cerca de 35 mil casos

Tais números são reflexos de um estado omisso, que não reduziu a superlotação da população prisional, apesar de esta ser uma das medidas recomendadas pela Organização dos Estados Americanos em seu “Guia prático para respostas inclusivas e uma abordagem de direitos para COVID-19 nas Américas”, documento em que a OEA demonstra sua preocupação com esse grupo vulnerável e insta os Estados a adotarem medidas especiais para a sua proteção.

Para mais, cumpre ressaltar a problemática que envolve a situação dos povos indígenas durante a pandemia. De acordo com o dossiê produzido pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), em parceria com a revista Vukápanavo e o apoio da Fiocruz, “Pandemia da Covid-19 na vida dos povos indígenas”, as mortes provocadas pelo COVID-19 entre os indígenas da Amazônia são duas vezes maior que a média nacional. Isso devido ao contato com os garimpeiros, e a falta de estrutura de saúde específica para essas comunidades. Não obstante, a segurança alimentar dos indígenas é ameaçada constantemente por conta da extração de madeira ilegal e do agronegócio, que vêm sendo estimulado no atual governo.

Nessa toada, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos emitiu a resolução 35/2020, na qual outorgou medidas cautelares de proteção voltadas aos membros dos povos indígenas Yanomami e Ye’kwana, que encontram-se em situação de gravidade e urgência, uma vez que seus direitos à vida e à integridade pessoal estão em risco, em função de suas cormobidades significativas, em conjunto com as falhas no sistema de saúde e com a atividade de garimpo ilegal em seu território. Neste documento a CIDH recomendou ao Brasil a adoção de medidas para salvaguardar os direitos supracitados, incluindo a implementação de “medidas preventivas contra a disseminação da COVID-19, além de lhes fornecer atendimento médico adequado em condições de disponibilidade, acessibilidade, aceitabilidade e qualidade, de acordo com os parâmetros internacionais aplicáveis”, bem como medidas de não repetição.

 Entretanto, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), principal entidade garantidora dos Direitos Humanos indígenas, vêm sendo desarticulada, inclusive no que tange à saúde, quando o governo federal tenta lavar as mãos quando busca passar a responsabilidade para o âmbito municipal. Conforme o supracitado dossiê, o gasto com saúde indígena durante a pandemia foi menor do que nos mesmos meses no ano anterior. Também, medidas de proteção para as comunidades, propostas pela Lei 14.021/2020, que dispõe sobre medidas de proteção social para prevenção do contágio e da disseminação da Covid-19 nos territórios indígenas, foram vetadas pelo presidente Jair Bolsonaro, que se opôs a diversas medidas fundamentais para salvaguardar a saúde dos indígenas, tais como o acesso universal à água potável, distribuição gratuita de materiais de higiene e o asseguramento de equipamentos de UTI. 

Complementarmente, uma pesquisa difundida no dia 28 de junho de 2020, isto é, no Dia do Orgulho LGBTQIA+, indica que as pessoas transgênero estão em primeiro lugar na faixa de vulnerabilidade considerada grave em relação aos impactos do isolamento social decorrentes da pandemia, seguidas pelas pessoas pretas, pardas e indígenas. Enquanto os bissexuais aparecem em terceiro. Além do aumento da taxa de desemprego dos membros da comunidade LGBTQIA+. Quase metade (44,3%) das pessoas LGBTQIA+s “tiveram suas atividades totalmente paralisadas e 24% perderam o emprego durante o isolamento social”. 

Apesar disso, é comum a presença de discursos discriminatórios por parte de autoridades públicas, que além de se omitir em criar políticas voltadas para essa população, ainda promovem a acentuação do preconceito e, por conseguinte, da vulnerabilidade desse grupo. Tais medidas vão em descompasso com as recomendações fornecidas pela Organização dos Estados Americanos no já citado “Guia prático para respostas inclusivas e uma abordagem de direitos para COVID-19 nas Américas”, em que são ressaltados ao menos três eixos prioritários – informação, apoio e assistência – para a proteção da comunidade LGBTQIA+.

Ante ao exposto, denota-se a possibilidade de responsabilização do Estado brasileiro por atos omissivos, em virtude da sua conduta perante os entornos da pandemia de COVID-19, com base no ordenamento jurídico nacional e internacional. Tal como resta evidente a necessidade de adoção de políticas públicas que se voltem para a população brasileira, sobretudo, para os grupos vulneráveis. Sendo imprescindível, portanto, que o governo atue em observância ao conteúdo do ordenamento jurídico brasileiro e que, concomitantemente, cumpra com os compromissos internacionais assumidos, realizando o devido controle de convencionalidade para melhor garantir os direitos humanos no âmbito interno.

Palavras-chave:

Omissão; Negligência; Grupos vulneráveis; Covid-19; Comissão Interamericana de Direitos Humanos; Convencionalidade; Responsabilidade; Poder Executivo.