As definições da palavra solidariedade costumam trazer referências a responsabilidades recíprocas entre membros de uma coletividade. Apoio em favor de uma causa ou movimento. Compartilhamento de ideias, reciprocidade de interesses e obrigações. Sentimentos de amor ou compaixão pelas pessoas injustiçadas ou necessitadas, o que impele indivíduos ou coletividades a prestar-lhes ajuda moral ou materialmente. Ligação recíproca entre duas ou mais pessoas, que são dependentes entre si. Uma definição sociológica do termo faz referência ao compartilhamento de atitudes e sentimentos, tornando o grupo uma unidade mais coesa e sólida, com a capacidade de resistir às pressões externas.

Na história da filosofia ocidental, a ideia de solidariedade data da Antiguidade Clássica, com Platão e Aristóteles, que concebiam os seres humanos como sujeitos coletivos, políticos, sociáveis, que se agregam em busca de possibilidades para viver melhor, em contraposição à teoria individualista de Protágoras, que naturalizava a subjugação do mais fraco pelo mais forte nas relações humanas[1]. Após a revolução industrial, com a ascensão dos Estados liberais, em contraposição ao seu viés individualista emerge uma concepção dos seres humanos como detentores de direitos, cujo bem-estar social deve ser garantido mesmo que se sobreponha a interesses particulares, onde a solidariedade passa a ser entendida como um princípio a ser exercido tanto pelo Estado como pelos indivíduos. 

Após a segunda guerra mundial, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprova a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, que traz premissas normativas às sociedades e aos Estados assentadas na proteção da dignidade humana e no ideal de solidariedade. Assim, a solidariedade como princípio passa a ser entendida não apenas como caridade ou filantropia, como nas concepções teológico-cristãs do século XIX, mas como parte de uma perspectiva de construção de políticas sociais concretas.[2]

Como muitos Estados a partir dessa época, o Brasil incorpora o princípio da solidariedade em seu ordenamento jurídico no Artigo 3º da Constituição Federal de 1988, que define como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: “construir uma sociedade livre, justa e solidária”. Aqui, solidariedade passa a funcionar como um princípio informador do sistema jurídico, que exige do Estado uma atuação proativa no sentido de concretizá-lo.[3]

No entanto, a postura do Estado brasileiro durante a pandemia do novo coronavírus é exatamente o contrário do que prevê a nossa Constituição cidadã, estimulando o individualismo e o escárnio da população em relação ao bem estar coletivo. Diante de uma crise sanitária, ambiental, social e política sem precedentes, na ausência de uma política de informação e enfrentamento ao vírus coordenada nacionalmente, no desafio de responder à urgência da sobrevivência, do desemprego, do desamparo e da fome, a sociedade brasileira está se movimentando a partir de um princípio de solidariedade que transcende as elaborações filosóficas e jurídicas ocidentais. 

A solidariedade é também princípio ancestral da filosofia africana Ubuntu. Com origem em comunidades de língua Bantu, Ubuntu é uma contração da máxima Umuntu ngumuntu ngabantu – “Uma pessoa é uma pessoa através de outras pessoas”, e além de um pensamento filosófico constitui também uma ética-política, que valoriza o humano e a natureza em sua reciprocidade, onde a humanidade de alguém é inextrincável da dos demais, e só se realiza em comunidade. Supõe um modo de viver e existir comunitário, antirracista e policêntrico, de cooperação e partilha para o proveito coletivo.[4]

Do mesmo modo, o conceito de Bem Viver, oriundo das epistemologias dos povos originários da América Andina e Latina, é o que inspira a noção de solidariedade aqui expressa. Sumak kawsay em Quéchua, idioma falado por grupos indígenas do Equador e Bolívia, Suma Qamaña, na língua do povo tradicional Aymara na Colômbia, teko porã em Guarani ou ainda nhanderekó, em Guarani Mbya. O Bem Viver representa a cosmovisão de povos tradicionais que se organizam a partir do coletivo, e faz referência a uma ontologia, filosofia, atitude política ou um modo de vida que promove a convivência em comunidade, a sustentabilidade, a soberania dos povos e a solidariedade. Aqui, tem centralidade uma noção de solidariedade contra hegemônica, afirmada na reciprocidade entre indivíduos, sociedade e o planeta, na conexão e interdependência entre a sociedade e a natureza, esta reconhecida também como sujeita de direitos.[5]

Estamos mobilizando nas mais diversas iniciativas da sociedade civil desde o início da pandemia do novo coronavírus no Brasil uma solidariedade amparada nas epistemologias e cosmovisões ancestrais de Ubuntu e Bem Viver, praticada por povos originários não apenas como estratégia de sobrevivência e resistência a séculos de opressão e violência capitalista racista, mas também como princípio radical que nos permite sonhar outros mundos possíveis.

Outros mundos possíveis

Muito se tem falado de solidariedade no contexto da pandemia e do agravamento da crise dela decorrente. Para responder à emergência de sobreviver ao vírus e à política genocida do Estado brasileiro, diversas iniciativas solidárias, promovidas por movimentos sociais, coletivos, comunidades, pela sociedade organizada, se espalharam e continuam sustentando a existência e a resistência da população brasileira que vive historicamente nas margens do sistema, e cuja atuação política tem como fim último o enfrentamento às desigualdades, a transformação social, um mundo de Bem Viver.

Desde o início da pandemia, as mulheres têm protagonizado a construção de respostas à emergência sanitária, social, econômica e política que vivemos, mobilizando campanhas de arrecadação de recursos para a doação de alimentos e kits de higiene pessoal, denunciando a violência doméstica e acolhendo mulheres nessa situação, denunciando violações de direitos das populações vulnerabilizadas, promovendo o acolhimento frente ao desespero, ao sofrimento e ao luto, fortalecendo vínculos comunitários e redes de apoio, tecendo fios de resistência para si mesmas, suas comunidades e coletividades.

É a partir dessas experiências que falamos de solidariedade não como uma ação hierárquica, de cima para baixo, daqueles que concentram as riquezas do planeta e encenam a distribuição de uma parte insignificante do que lucram com a força de trabalho da maior parte da população, apenas para gerar maior dependência e submissão. A solidariedade que nos move, como princípio e práxis, é política, mobilizadora, geradora de vínculos, de reciprocidade, de engajamento coletivo, e reconhece as pessoas que hoje precisam ter suas necessidades urgentes atendidas como sujeitas de direitos. Carrega um olhar crítico sobre a sociedade e um projeto político de enfrentamento às desigualdades a longo prazo também, não apenas como mitigação aos estragos da exploração capitalista, racista, misógina, capacitista e LGBTI+fóbica.

A solidariedade, nesta perspectiva, alia ações de enfrentamento à fome à incidência política, à defesa de políticas públicas, de ações estruturais de distribuição de renda, de reforma agrária, de enfrentamento ao racismo e à violência de gênero, por exemplo. Aponta a urgência da fome, mas também a urgência de restabelecermos um patamar de direitos no país, o direito à alimentação, ao trabalho, à moradia, educação e saúde como horizonte da luta política para a sociedade que queremos.[6]

Neste sentido – emancipatório e feminista – a solidariedade é um princípio e uma práxis indissociável do cuidado coletivo, daquela relação recíproca entre uma e todas, da interdependência entre todos os seres presente na filosofia Ubuntu e no Bem Viver. Vem de um compromisso com o cuidado coletivo nossa capacidade de mobilizar a solidariedade e construir outros mundos possíveis.

[1] Ver SILVA, Cleber Demetrio Oliveira da. O princípio da solidariedade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1272, 25 dez. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9315. Acesso em: 6 ago. 2021.

[2]Ver Carvalho MHP, Miranda MLL. O princípio da solidariedade no enfrentamento da COVID-19 no Brasil. Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário. 2021 jan./mar.;10(1):13-38. Disponível em: https://doi.org/10.17566/ciads.v10i1.729. Acesso em: 6 de agosto.

[3]Ibid. 

[4]Ver VASCONCELOS, F. A. FILOSOFIA UBUNTU. LOGEION: Filosofia da informação, Rio de Janeiro, v. 3 n. 2, p. 100-112,mar./ago. 2017. Disponível em: http://revista.ibict.br/fiinf/article/view/3841/3181. Acesso em 9 ago 2021. 

[5]Ver ALCANTARA, Liliane Cristine Schlemer; SAMPAIO, Carlos Alberto Cioce. Bem Viver: uma perspectiva (des)colonial das comunidades indígenas. Rev. Rup., San Pedro de Montes de Oca,  v. 7, n. 2, p. 1-31,  Dec.  2017.   Disponível em: http://dx.doi.org/10.22458/rr.v7i2.1831. Acesso em: 9 Ago 2021. 

[6]Ver: Rede de solidariedade – A Revolução Solidária no Enfrentamento à Pandemia no Brasil