O que compreendemos por Soberania Alimentar? 

O conceito de Soberania Alimentar surge em contraposição ao conceito de Segurança Alimentar estabelecido pela Organização das Nações Unidas para Alimentação de Agricultura – FAO, pois compreende-se, que um povo para ser livre precisa ser soberano e essa soberania passa pela alimentação. É importante que saibamos que quando falamos sobre soberania alimentar, estamos nos referindo ao direito dos povos decidirem sobre as suas políticas agrícolas e alimentares, priorizando o direito fundamental à alimentação saudável, que promove vida.  Soberania alimentar é: 

“[…] o direito dos povos definirem suas próprias políticas e estratégias sustentáveis de produção, distribuição e consumo de alimentos que garantam o direito à alimentação para toda a população, com base na pequena e média produção, respeitando suas próprias culturas e a diversidade dos modos camponeses, a comercialização e gestão dos espaços rurais, nos quais a mulher desempenha um papel fundamental […]. A soberania alimentar é a via para se erradicar a fome e a desnutrição e garantir a segurança alimentar duradoura e sustentável para todos os povos.” (Fórum Mundial sobre Soberania Alimentar, Havana, 2001).

A soberania alimentar tem como princípio basilar a relação de respeito com o meio ambiente, com os processos da natureza, tendo a defesa da agrobiodiversidade e da sociobiodiversidade como  indispensáveis. É necessário que os povos tenham autonomia de decidir o que e como cultivar, comercializar e o que disponibilizar aos mercados. Outro fato crucial é priorizar o consumo de produtos locais, nos chamados circuitos curtos de comercialização,  bem como respeitar a sazonalidade da produção, consumindo alimentos da época, prescindindo o uso de venenos, de conservantes, aditivos e transportes desnecessários. Os sistemas alimentares geram desigualdades, e, em muitos casos, expulsam de suas terras, em todo o mundo, milhões de pessoas que produzem alimentos diversificados para a própria subsistência ou para o mercado, tornando assim a alimentação cada vez mais monótona e menos saudável”. 

A soberania alimentar é pauta dos movimentos sociais do campo ligados à Via Campesina Internacional, nas últimas duas décadas. Compreendendo que, um país que não tem soberania alimentar, não conseguirá ter soberania política, pois “a soberania alimentar é pré-condição para a soberania política” (Machado & Machado Filho, 2014, p.84). O que significa dizer que, quando o país não produz alimentos suficientes para a sua população, torna-se aprisionado aos interesses das grandes transnacionais que controlam o sistema agroalimentar em escala global.

O direito humano à alimentação saudável vem sofrendo sérias ameaças, pelos monopólios de terras e pelo pacote tecnológico oferecido pelas grandes empresas multinacionais que controlam toda a cadeia alimentar (desde as sementes até os alimentos ultraprocessados), consumindo um alto grau de agrotóxicos e transgênicos e provocando violência no campo. Com o tempo, a sociedade passou a se alimentar cada vez mais de alimentos ultraprocessados, que passam por diversos processos químicos e grande parte são nutricionalmente pobres. Há um estímulo para que as mais variadas sociedades consumam os mesmos tipos de produtos, causando uma drástica redução das variedades de espécies. De acordo com a FAO, 66% da produção agrícola mundial é suprimida pelo cultivo de apenas nove espécies de plantas. Pois, para o sistema agroalimentar dominante, o alimento é considerado um meio para gerar lucro em detrimento da vida. 

Para que alcançar a Soberania Alimentar? 

A soberania alimentar precisa ser vista como central e estratégica para enfrentar a conjunção de crises que vivemos hoje no Brasil. As organizações da Via Campesina Nacional e Internacional têm feito lutas ao longo da história nessa perspectiva, como é o caso da declaração dos direitos dos camponeses, pautada desde 2008 e aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas – ONU, em Dezembro de 2018. Essa é uma conquista fundamental para alcançar a soberania alimentar, pois, se torna um instrumento estratégico para pressionar os governos a garantir políticas públicas para os camponeses e camponesas. Assim, espera-se que haja um fortalecimento do “compromisso dos Estados” em todos os níveis “de defender e proteger os direitos e a dignidade dos camponeses e de outras pessoas que trabalham nas áreas rurais”. A Soberania Alimentar tem que ser assumida como política de Estado. 

Para alcançar a soberania alimentar é fundamental tratar da questão fundiária e do acesso à terra, através da Reforma Agrária popular,  acesso ao crédito, a assistência técnica, a tecnologias acessíveis para a agricultura familiar camponesa, que diminuam a penosidade do trabalho. É imprescindível o fim do uso de agrotóxicos na produção de alimentos. Para alcançar soberania alimentar é preciso considerar a complexidade que o tema abrange, a questão dos territórios camponeses, indígenas, quilombolas e das demais comunidades e povos tradicionais, fortalecer a interação entre campo e cidade, entre quem produz e quem consome os alimentos produzidos,  considerar a questão sociocultural e a sociobiodiversidade, produção e proteção das sementes crioulas nas mãos dos povos do campo, das águas e das florestas.  A valorização da cultura alimentar que é questão substantiva para construirmos a soberania alimentar. A agricultura familiar e camponesa tem uma diversidade que precisa ser considerada, com sua racionalidade e lógica, porque garante o auto sustento e a renda, se configurando assim, como o terreno fértil capaz de produzir a soberania alimentar. 

Com  toda a complexidade que envolve a soberania alimentar, é possível afirmar que o campesinato brasileiro é o sujeito histórico e político com condições reais de transformar o campo e construir soberania alimentar, é preciso reconhecer o protagonismo das mulheres camponesas, que historicamente,  com seus saberes e conhecimentos preservam, cultivam e preparam uma grande diversidade de sementes e de alimentos. São também, as que mais sofrem os efeitos do patriarcado, racismo e capitalismo que são estruturais no campo. A discriminação das mulheres também foi destacada na declaração dos direitos dos camponeses, ao mencionar a vulnerabilidade das mulheres “devido à discriminação ilegal generalizada que restringe o seu acesso, uso e controlo da terra”. Quando consideramos que o campesinato brasileiro tem aproximadamente 2,3% das terras agricultáveis, “Mulheres e pessoas não brancas têm ainda menos terras, mas seguem produzindo com variedade e no caminho da agroecologia como modo de vida e projeto de sociedade, no caminho da comida de verdade e da soberania alimentar.”

Com a Pandemia é outra coisa

Existe uma ligação entre o modelo de desenvolvimento econômico mundial, a degradação ambiental com a pandemia da COVID-19. As pesquisas apontam que o coronavírus estaria associado ao modelo hegemônico de agropecuária industrializada, imposto em todo o mundo pelo sistema capitalista. A pandemia e os sistemas alimentares que abastecem o planeta caminham juntos, em sua origem e seus impactos. É de fundamental importância que estejamos em alerta aos riscos de outras catástrofes sanitárias, em razão do modelo de agricultura dominante do agronegócio, que tem provocado a destruição e o extermínio dos últimos refúgios da natureza.

Os desmontes de estruturas do Estado criadas no Brasil para garantir o direito humano à alimentação adequada e saudável da população Brasileira, desde 2016 o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN) e Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional vem sofrendo ataques, a primeira medida provisória do desgoverno de Jair Bolsonaro foi a MP N° 870 de 01/01/2019, que trata de extinguir o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), o que demonstra que o governo federal não está preocupado com a fome e a desnutrição dos milhões de brasileiros. O isolamento social afetou todas as etapas dos sistemas alimentares: produção, troca, escoamento, comercialização, consumo e aproveitamento de alimentos. É necessário a garantia de alimentação suficiente, adequada e saudável e as construções participativas de sistemas agroalimentares sustentáveis.

De acordo com as Nações Unidas, houve o agravamento da fome em 2020, relacionando as consequências da Covid-19.  Em um relatório feito por várias agências, presume que 811 milhões de pessoas enfrentaram a fome no ano passado e terá um agravamento até 2030.  “Infelizmente, a pandemia continua a expor fraquezas em nossos sistemas alimentares, que ameaçam a vida e a subsistência de pessoas em todo o mundo”, escrevem os chefes das cinco agências da ONU no Prefácio deste ano. Esse ano de pandemia oferece uma oportunidade para a sociedade repensar a estrutura do sistema agroalimentar, pensando a partir do avanço e da promoção da soberania e segurança alimentar e nutricional.

Das pessoas que enfrentam a fome no mundo (418 milhões) vivem na Ásia, mais de um terço (282 milhões) na África e uma proporção menor (60 milhões) na América Latina e no Caribe. Mais de 2,3 bilhões de pessoas (30% da população global), não tinham acesso à alimentação adequada. Um dado alarmante é sobre o aprofundamento da desigualdade de gênero, para cada 10 anos com insegurança alimentar, havia 11 mulheres com insegurança alimentar em 2020, quase um terço das mulheres em idade reprodutiva sofrem anemia. 

Com a chegada da pandemia no Brasil,  acontece uma conjunção de crises, considerando, que já estavámos submersos em crises política e econômica, muito complexas, as quais foram agravadas com a crise sanitária da COVID-19. A pandemia jogou luz a situação de Insegurança Alimentar (IA), bem como, agravou e muito essa situação. Segundo o  Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no contexto da pandemia da covid-19, 19,1 milhões de pessoas passaram fome e 55% não se alimentavam adequadamente no final de 2020.

Outro elemento importante que o inquérito mostrou é  que a insegurança alimentar grave nas áreas urbanas onde 9% dos entrevistados chegou a passar fome, já  na área rural “onde a “IA grave, portanto, a  ocorrência de fome, era realidade em 12% dos domicílios” no campo. 

Essa realidade também foi percebida em outro estudo coordenado pelo Grupo de Pesquisa Alimento para Justiça da Universidade Livre de Berlim, na Alemanha, em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e com a Universidade de Brasília (UnB), o estudo “Efeitos da pandemia na alimentação e na situação da segurança no Brasil”, realizado entre agosto e dezembro de 2020 e divulgado em abril de 2021, revela que o fantasma da fome voltou a rondar com força os lares de “mais de 125,6 milhões de pessoas que não se alimentaram como deveriam ou já tinham algum tipo de incerteza quanto ao acesso à alimentação no futuro durante a pandemia de coronavírus”, o estudo também apontou que 59,4% dos lares vivenciou algum grau de insegurança alimentar no mesmo período. Nesses lares o consumo de carne teve uma redução de 44% e o consumo de frutas, teve uma redução de 41%. Esses dados revelam que além de diminuir a quantidade de alimentos consumidos, houve também, uma redução na diversidade de alimentos para o consumo, justamente, durante uma crise sanitária em que a boa alimentação é fator determinante para o fortalecimento do sistema imunológico, fundamental no enfrentamento ao vírus. 

Outro elemento importante que o estudo apresenta é o nível de insegurança alimentar em todas as regiões do país. “Na região Nordeste, 73,1% dos domicílios registraram situação de insegurança alimentar. A região Norte aparece em seguida, com 67,7%. O Centro-Oeste aparece com 54,6% na pesquisa e o Sudeste com 53,5%. A região Sul, que apresentou a melhor situação, tem 51,6%”. O que mostra que em todas as regiões do país, mais da metade dos lares enfrentam algum nível de insegurança alimentar.  

Diante dessa realidade, urge a necessidade de recolocar o tema da SOBERANIA ALIMENTAR na agenda política do país, com a centralidade  que merece, pois, só assim será possível acabar com a insegurança alimentar e com a fome,  frear esse modelo antagônico à vida e garantir a produção de alimentos saudáveis, diversificados e agroecológicos que promovem vida e saúde para o povo brasileiro.