Durante a crise da Covid-19, organizações lideradas por mulheres se reúnem para debater sobre como as ações de cuidado e solidariedade fortalecem a luta e resistência no enfrentamento da pandemia no Brasil.

Completamos mais de um ano de pandemia no Brasil e os desafios permanecem. Como as mulheres vêm lidando com os impactos da crise? O que é preciso para construirmos um futuro mais solidário?

Essas são algumas das perguntas que marcaram a última Sexta de Direitos, encontro virtual que aconteceu na sexta-feira (11), para falar sobre os desafios que as mulheres vêm enfrentando em decorrência da pandemia da Covid-19.

Estiveram presentes lideranças femininas de diversas organizações brasileiras para discutir as ações que vêm sendo realizadas, desde 2020, para mitigar os efeitos da crise, principalmente entre as mulheres negras e pobres, que mais vêm sofrendo com o desemprego, sobrecarga dos serviços domésticos e a violência. 

O evento teve início com a fala das pesquisadoras do Observatório Direitos Humanos Crise e Covid-19, Cecília Cuentro e Isadora Salomão. Ambas apresentaram dados e informações sobre o estudo, que será lançado em breve, sobre as iniciativas de solidariedade e cuidado realizadas por organizações e movimentos da sociedade civil durante a pandemia. O estudo teve suas premissas a partir da carta-denúncia, publicada pelo Observatório no início deste ano, e destaca o protagonismo das mulheres para a sustentação da vida durante a pandemia.

A pesquisa mapeou mais de 800 mulheres envolvidas em ações de solidariedade e cuidado, e cerca de 30 mil pessoas foram contempladas por essas iniciativas em 2020, recebendo materiais de higiene, cestas básicas, acolhimento e orientação para acessarem serviços e programas sociais, participando de rodas de cuidado e criando espaços seguros para falar sobre as violações de direitos e buscar caminhos de denúncia. 

“Cada vez mais a luta precisa partir das mulheres, levando em conta o fim da hierarquia entre nós”

A pandemia intensificou as violações de direitos e, em contrapartida, as iniciativas de solidariedade se fortaleceram, mas precisamos ter em mente que, por vivermos em uma sociedade que ainda é patriarcal e machista, a compreensão do cuidado e autocuidado entre as mulheres não está clara, por isso as organizações vêm trazendo o debate sobre gênero e interseccionalidade em suas pautas.

Segundo Lúcia Xavier, coordenadora da ONG Criola, o empobrecimento das mulheres e a falta de mobilidade social certamente vão impactar as novas gerações.

“Uma construção política extrema que leva à fome, significa que nossa capacidade política fica prejudicada. Sobretudo, ficará prejudicada nossa luta. Isso nos obriga a exigir o cuidado e o combate à fome, à violência, e a garantia dos direitos dos sujeitos políticos. Cada vez mais a luta precisa partir das mulheres, levando em consideração o fim da hierarquia entre nós”. 

Elas que lutam, elas que resistem, elas que estão à frente de muitas lutas

Em consonância com a fala de Lúcia, Analba Brazão, integrante da SOS Corpo, problematizou a falta de políticas públicas voltadas para as mulheres e afirmou que o novo estudo do Observatório revela que os movimentos sociais começaram a atuar com muita força na perspectiva de cuidado e solidariedade, mas sempre colocando a assistência junto com a luta política. 

“Este estudo para a gente é realmente um começo. A nossa expectativa era exatamente ouvir a rede [de movimentos e organizações] para que novos elementos fossem trazidos para a análise que está sendo construída. No estudo, trazemos também a experiência das mulheres indígenas, a experiência das mulheres quilombolas, pois a luta política que estamos fazendo é uma luta pela vida. Essa é a grande estratégia. Imagina se conseguíssemos fazer um mapeamento ainda maior dessas ações que o Estado deveria estar fazendo?” 

Além disso, o encontro também foi marcado pela força política de Manoela Back, do Coletivo Feminista Helen Keller, que pautou a importância do ativismo de mulheres com deficiência enquanto potência política. “Quando se fala de pessoas com deficiência, até os governos de esquerda tendem a manter pautas neoliberais. Queremos compreender a interdependência e compreendê-la enquanto potência política. Ao falarmos sobre decolonialismo e feminismo, precisamos lembrar de sermos, também, anti-capacitistas”. 

Os desafios enfrentados pela comunidade LGBTI+ também foram pautados por Paulo Mariante (ABGLT) e Silvia Dantas (AMB). Devido ao isolamento social e à crise econômica que assolou o país, muitas pessoas estão tendo que lidar com a convivência familiar e o desemprego, o que intensifica a vulnerabilidade a que estão submetidas. Segundo pesquisa do Coletivo Vote LGBT, em parceria com a Box 1824, durante a pandemia os problemas relacionados à saúde mental aumentaram, pois, a nova rotina em ambientes propícios à violência verbal, moral e até física, intensificou a solidão no dia-a-dia. 

Mulheres e violência

Violência doméstica e feminicídio também foram temas debatidos no encontro. Assim como o isolamento social intensificou a situação de vulnerabilidade das pessoas LGBTI+, as mulheres também vêm sofrendo com a violência doméstica e o feminicídio. Dados do  canal Ligue 180 revelam que, em 2020, as denúncias de violência contra as mulheres cresceram, mas é importante destacar que as mulheres que estão isoladas do convívio social ficam reféns do agressor e são impedidas de fazer o boletim de ocorrência.

Conforme publicamos em nossa pesquisa Serviços Públicos e Direitos Humanos no contexto da pandemia no Brasil, no âmbito dos municípios, as estruturas de gestão de políticas para as mulheres permanecem frágeis. De acordo com os dados da Munic (2018), 80,05% dos municípios do país não possuem órgão executivo específico para gestão de políticas para as mulheres. Já em nosso levantamento sobre as 10 cidades mais afetadas por números absolutos de óbitos pela Covid-19 em relação à violência contra mulheres, revelamos que: 

– Em 9 estados, 50% ou mais das 10 cidades com maior número de óbitos pela Covid-19 afirmam a inexistência de Juizado ou vara especial de violência doméstica e familiar contra a mulher.

– Em 22 estados, 50% ou mais das 10 cidades com maior número de óbitos pela Covid-19 afirmam a inexistência de serviços de responsabilização do agressor.

É evidente a ausência do Estado na criação de políticas públicas para as mulheres. E para lidarmos com as consequências da crise, as organizações e movimentos da sociedade civil tornam-se fundamentais. Para Guacira César de Oliveira, fundadora do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea), a solidariedade e o cuidado criados por mulheres em seus territórios possibilitam a construção de ações para mitigar os efeitos da pandemia em nosso país. “O cuidado e a solidariedade é o que nos afirma como sujeitos: sujeitos das nossas lutas, sujeitos das nossas resistências. É difícil reconhecer o papel, o lugar estratégico e central que as mulheres ocupam, e é importante que sejamos capazes de mostrar isso neste momento”.