Em junho de 2020, o Observatório Direitos Humanos Crise e Covid-19 publicou um informe sobre a ausência de um plano integrado para contenção da pandemia no Brasil. O documento denunciou a negligência do Estado em relação à calamidade pública e a estratégia de minimizar os impactos da pandemia, que agudizou as desigualdades sociais e violações de direitos já existentes. Nos últimos meses temos nos dedicado a produzir pesquisas sobre os impactos da pandemia, com foco nos serviços públicos e direitos humanos no Brasil.

No estudo “Serviços Públicos e Direitos Humanos no contexto da pandemia no Brasil”, abordamos sobre os problemas que já vinham sendo identificados no campo da prestação de serviços públicos e interpretamos os efeitos da pandemia no agravamento dessas violações, sobretudo em relação à população negra, mulheres, pessoas LGBTQIA+, povos e comunidades tradicionais, moradores de favelas, populações rurais e outros grupos sociais. Já o levantamento sobre as 10 cidades mais afetadas por números absolutos de óbitos pelo vírus, tendo em vista o período das eleições municipais, apontou para uma falência estrutural de uma estrutura básica de políticas públicas em saúde da população negra, quilombola e indígena, segurança alimentar e nutricional e enfrentamento à violência contra mulheres.

O Brasil ultrapassou o número de 200 mil óbitos causados pelo coronavírus. Ao mesmo momento em que o mundo se debruça na construção de possíveis saídas dessa crise sanitária planetária com a produção das primeiras vacinas contra a Covid, o governo brasileiro tem se pronunciado e agido de forma vacilante na construção de um plano de vacinação. O paradoxo é ainda maior quando se tem em conta que o país é referência mundial no assunto.

Cadê a campanha de vacinação? Quais as diretrizes desenvolvidas para a proteção dos grupos mais vulnerabilizados (pessoas privadas de liberdade, quilombolas e PcDs), que têm enfrentado uma alta taxa de mortalidade, e sofrido uma total desassistência com o avanço da crise amplificada pela doença? Cadê o calendário com data para início e término da imunização nos brasileiros? Quais as garantias dadas pelo governo sobre alocação de recursos e produção de insumos necessários para distribuição das vacinas, como é que fica?

Em 12 de dezembro de 2020, o governo federal, após judicialização e forte pressão política e de vários setores da sociedade, o Ministério da Saúde entregou ao Supremo Tribunal Federal (STF) o Plano Nacional de Vacinação contra Covid-19. O plano apresentado é frágil e possui lacunas. Em notícia publicada no site do G1, no dia 13 de dezembro, Pedro Hallal, epidemiologista e reitor da Universidade Federal de Pelotas, defendeu que, ao não contemplar toda população, principalmente os mais pobres, e o enfrentamento da pandemia passa a ser politizado, o Plano é insuficiente e ideológico.

“Assim como no início da pandemia, ao citar o público prioritário para recebimento das vacinas, o governo não incluiu as pessoas com deficiência. Não previram nossos corpos como grupo de risco, e isso é uma forma de invisibilizar nossa causa”, afirma Manoela Back, integrante do coletivo feminista Helen Keller.

NEGACIONISMO CIENTÍFICO E DESINFORMAÇÃO

“Em primeiro lugar é preciso analisar questões epistemológicas que estão diretamente vinculadas a uma crescente aceitação social do negacionismo científico e à desconsideração de argumentos racionais em diversos âmbitos, desde o terraplanismo até a condenação à mal chamada ideologia de gênero, passando pelo criacionismo e pela rejeição às ciências humanas e sociais. Esse negacionismo que foi adotado pelo atual governo já na campanha eleitoral, com seu desprezo pelas universidades, pela pesquisa científica, pelos direitos das populações vulneráveis, pelas comunidades indígenas, LGBT, populações de rua, mulheres em situação de violência etc, agrava-se em tempos de epidemia, quando existe maior necessidade de um Estado presente que garanta o exercício dos direitos”. Sandra Caponi – Departamento de Sociologia e Ciência Política, Universidade Federal de Santa Catarina.

A atual crise sanitária e social escancarou um plano genocida do Estado brasileiro, cuja orientação foi o “deixar morrer”. A falta de articulação nacional criou um conflito federativo em medidas de contenção do vírus ficou a cargo de governadores e prefeitos. Qualquer tentativa de combater a doença foi evidentemente insuficiente. No ranking de mortes pela Covid-19, ocupamos o segundo lugar, ficando atrás somente dos Estados Unidos. Como é sabido, o presidente do país também adotou o discurso negacionista da pandemia, um dos elementos que influenciou sua recente derrota em uma tentativa de reeleição.

A infodemia – disseminação em massa de informações falsas – prejudica o campo científico e impacta negativamente o comportamento da população. De acordo com Rodrigo Stabelli, pesquisador da Fiocruz, em entrevista realizada pela Radis – Comunicação e Saúde, é preciso sensibilidade política capaz de entender a crise humanitária provocada pela pandemia.

“É importante a gente deixar claro para a população que problemas complexos exigem respostas complexas. E respostas complexas exigem tempo. Então, toda vez que você receber uma notícia em que está muito simples combater essa crise, desconfie dela. Uma pandemia que se arrasta no Brasil, com o descontrole da coordenação, faz com que a população também sofra mentalmente. E ela se torna suscetível a consumir notícias falsas e temos que ter inovação no conhecimento para combatê-las”, defende o pesquisador.

Quanto mais vacinas, mais pessoas serão imunizadas. Trata-se de uma relação lógica simples, mas o governo federal parece não entender isso. Atualmente, o Brasil possui acordo fechado apenas com a Astrazeneca, empresa responsável pelos estudos da vacina de Oxford.

Evidenciando a falta de gestão nacional, em 20 de outubro do ano passado, o Ministro da Saúde, Ricardo Pazuello, informou que o governo brasileiro iria comprar 46 milhões de doses da CoronaVac, porém, no dia seguinte, o Presidente da República desmentiu a informação de fechamento do acordo da Coronovac, desenvolvida pela China. Tratando a pandemia como uma “gripezinha” e com discursos negacionistas, o Presidente, além de não ajudar, prejudica qualquer ação que vise o enfrentamento da pandemia no país. É preciso afirmar que tanto a resistência, quanto as ações de obstrução ao desenvolvimento de um plano de vacinação eficaz são extremamente negativas. Além de estimular a recusa ao uso das máscaras, Bolsonaro vem realizando discursos para intensificar a onda antivacina no Brasil. A produção de vacinas existe no Brasil há 47 anos e o país é uma das referências mundiais no assunto. Contudo, de acordo com pesquisa realizada pelo DataFolha, entre agosto e dezembro deste ano, o índice de pessoas que não pretendem se vacinar saltou de 9% para 22%. Uma porcentagem que pode vir a aumentar, uma vez que o governo tem defendido a não obrigatoriedade da vacina e a necessidade de assinatura de um termo de responsabilidade para vacinação. Trata-se de um posicionamento que não se limita a negar a vacina e sim obstruir o direito das brasileiras e dos brasileiros à vacinação, com a interposição de barreiras concretas para que a população seja imunizada.

“A gente sabe que essas pessoas [moradores de favela] são as que mais circulam pela cidade . Nosso Comitê de Emergência vem tentando auxiliar os moradores nas suas necessidades. Estamos animados com a possível chegada das vacinas no Brasil, mas sabemos das dificuldades políticas e institucionais do atual governo para fazer uma logística de distribuição, principalmente para nós, favelados”, ressalta Hugo Oliveira, integrante do coletivo SOS Providência – Rio de Janeiro.

ORÇAMENTO DA SAÚDE E FINANCIAMENTO DAS VACINAS

“Brasil não terá orçamento para vacina da Covid-19 em 2021, concluem especialistas em debate na Câmara dos Deputados”. Sus Conecta

No início de dezembro, foi apresentado o Projeto de Lei Orçamentária de 2021 na Comissão Externa de Enfrentamento à Covid. No documento não consta recursos extraordinários para enfrentamento da pandemia no próximo ano.

De acordo com informações publicadas no site do Sus Conecta, foi apresentado um orçamento de R$123,8 bilhões para setores da saúde. A maior parte desse valor vai ser destinada à assistência hospitalar (R$55,38 bilhões) e à atenção básica (R$23,9 bilhões). Lembrando que a Emenda Constitucional (EC/95/16) congelou investimentos no SUS até 2036.

Como o governo vai enfrentar as consequências da pandemia no próximo ano?

Francisco Funcia, consultor do Conselho Nacional de Saúde, alertou que, sem os créditos extraordinários e sob a regra da Emenda Constitucional, o orçamento de 2021 passa a ser igual ao de 2017 e menor do que foi aprovado na Lei Orçamentária para 2020, que era de R$ 125,2 bilhões. Além disso, o PLOA 2021 não inclui os gastos necessários para vacinas contra Covid-19. Em 14 de dezembro, o Presidente confirmou a assinatura da Medida Provisória (MP) que vai liberar R$ 20 milhões para compra das vacinas contra Covid-19.
Consta no Plano de Vacinação as seguintes informações:

  • Fase 1: 29,9 milhões de doses. Recebem a vacina trabalhadores de saúde, pessoas de 75 anos ou mais, indígenas e aqueles com 60 anos ou mais que estejam em instituições (como lares para idosos).
  • Fase 2: 44,8 milhões de doses. Para pessoas de 60 a 74 anos.
  • Fase 3: 26,6 milhões de doses. Etapa voltada para pessoas com comorbidades como Diabetes mellitus; hipertensão; doença pulmonar obstrutiva crônica; doença renal; doenças cardiovasculares e cerebrovasculares; indivíduos transplantados de órgão sólido; anemia falciforme; câncer e obesidade grave.
  • Fase 4: 7 milhões de doses. A vacina será aplicada em professores, profissionais da saúde, segurança, salvamento e do sistema prisional.

Além disso, de acordo com portal Poder 360, mais da metade das doses de vacinas contra Covid-19, o que representa apenas 13% da população, foram reservadas pelos países ricos. São eles: Canadá, Estados Unidos, Japão, Austrália, Reino Unido e União Européia. Sendo assim, quase 25% da população mundial pode não ser imunizada por um ano ou mais.

COVAX FACILITY

Covax Facility é um aporte de recursos para financiamento das vacinas no mundo, liderado pela GAVI – Global Alliance for Vaccine and Immunization. As ações visam ampliar o acesso a vacinas em países pobres e muito pobres. O GAVI é apoiado por organismos multilaterais (UNICEF, Banco Mundial, OMS) e iniciativas privadas (Fundação Gates, indústria biofarmacêutica e outros). Em relação à Covid-19, para garantir a doação das vacinas para esses países, foram adquiridos apenas 500 milhões de doses até o momento. É um número muito abaixo da meta que visa entregar pelo menos 2 bilhões de doses até o final de 2021.

FORTALECIMENTO DO SUS

A consolidação do SUS como um sistema público de atendimento universal, o fortalecimento de redes de assistência social com programas de transferência de renda e sistemas de proteção social conectados do âmbito municipal ao federal e a fixação de sistemas de financiamento das políticas sociais são algumas das importantes conquistas do período pós 1988. Tais conquistas resultaram de ação persistente, vigilante e propositiva na esfera da sociedade civil.

O SUS está longe de conseguir suprir as demandas que persistem em termos de estruturação de sistemas públicos de atendimento social e, em particular, em termos de atenção a grupos vulneráveis e historicamente excluídos. É contudo a saúde pública que, no Brasil, disponibiliza uma estrutura mínima para atendimento da população, uma vez que 99,98% das Unidades Federativas possuem estrutura de gestão para as políticas de saúde, majoritariamente operando com secretaria exclusiva (91,49%) e articuladas por meio do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde e também, no âmbito dos estados, do Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde. 

O Sistema Único de Saúde assume papel fundamental nas ações de enfrentamento à pandemia no Brasil. Com o vírus se disseminando pelo país, podendo atingir ainda mais pessoas de forma fatal, as medidas de enfrentamento à pandemia, atendendo, desde as primeiras necessidades básicas até o processo de imunização, só foram e estão sendo possíveis pela existência de um sistema de saúde pública. O fortalecimento da saúde pública é uma medida necessária para a defesa da vida de brasileiras e brasileiros, sobretudo da população mais vulnerabilizada.

O QUE ESPERAR PARA OS PRÓXIMOS MESES

2020 chegou ao fim sem previsão de início e término do Plano de Vacinação no Brasil. Um plano que reconheça e dê prioridade às vidas da população negra, de moradores de favela, da comunidade lgbtqia +, dos PcDs, de indígenas, quilombolas e de outros povos e comunidades tradicionais. A comunicação oficial do governo sobre o plano de vacinação é divergente e contraditória.

Do ponto de vista de gestão, a construção de uma sólida articulação nacional para enfrentamento da pandemia continua sendo uma grave lacuna, que sustenta um jogo de desresponsabilização do Presidente da República e responsabilização de governadores e prefeitos. Enfrentamos uma crise sem precedentes. É inegável que muitas vidas poderiam ter sido salvas. O negacionismo, a falta de planejamento, os recuos e as deficiências de gestão, a falta de proteção social que obrigou trabalhadoras e trabalhadores a colocarem suas vidas e de seus familiares em risco são fragmentos de um quadro de negligência com a vida da população brasileira. Enquanto outros países do mundo se preparam financeira e logisticamente para dar início a um processo de vacinação, no Brasil, vivemos um cenário de guerra ideológica contra as vacinas.

O tempo de garantir as vacinas e proteger a população tem sido perdido e o país está cada vez mais atrasado no debate e na ação efetiva. Discursos negacionistas e ideológicos sobre vacinação, medidas protelatórias, como defender a necessidade de assinatura de um termo de responsabilidade, medidas de obstrução, como impedir a compra de vacinas por questões ideológicas, a falta de ações concretas e de alocação de recursos suficientes são exemplos de ações que definem a escolha entre a vida e a morte da população que até o momento sobreviveu ao impacto do coronavírus. De qual lado o governo está?