A pandemia de Covid-19 no Brasil impactou não apenas a saúde humana, mas também outros importantes aspectos da vida social. A economia, a renda e os empregos de uma parcela considerável da população brasileira foram profundamente afetados pelos distúrbios criados pela pandemia, de modo que é urgente pensar em estratégias de proteção aos direitos e fortalecimento das redes públicas de assistência social, para enfrentar as desigualdades no presente momento.
Nesse sentido, o Observatório Direitos Humanos, Crise e Covid-19 tem publicado informes, denúncias e pesquisas sobre a situação dos direitos humanos no contexto da pandemia. Neste informe, destacamos dados sobre os impactos econômicos da pandemia no país, sublinhando como estes fenômenos vividos mundialmente intensificaram-se a partir das políticas de morte patrocinadas pelo governo brasileiro.
Segundo a OIT (2020), desde o princípio da pandemia, os setores que apresentavam maior risco de crise econômica e perdas de emprego no período eram as áreas de hotelaria e alimentação, serviços imobiliários e administrativos, indústria de transformação e comércio e serviços e reparação, o que foi comprovado com o decorrer do primeiro ano da doença (1). Além disso, a Organização também previu que embora o impacto econômico em tais setores fosse ocorrer em todo o mundo, ele afetaria mais os países que compõem as regiões mais empobrecidas e desiguais do planeta, em especial a América Latina.
Assim, apesar de desde o início da pandemia estar traçado um cenário que apontava para um enorme número de perda de vidas e uma massiva perda de empregos, o Governo Brasileiro adotou uma postura política prejudicial tanto do ponto de vista da saúde humana quanto da economia, ao disseminar a ideia de que o combate à doença não poderia implicar em um “mal maior”: a desaceleração da economia.
O discurso mantido pelo Presidente Jair Bolsonaro e por uma parcela do empresariado brasileiro(2), além de danoso, tem sido completamente infundado, uma vez que além de um grande número de vítimas, perderam -se também milhares de postos de trabalho no país, adicionando múltiplas camadas à crise. Um importante estudo do IPEA, conduzido por Heckscher (2021), sobre mortalidade por covid e perda de empregos na pandemia identificou que o Brasil registrou mais mortes por covid-19 em 2020 do que 89,3% dos demais países com dados sistematizados pela OMS, um total de 178. Além disso, levando em consideração os dados compilados pela OIT sobre os níveis ocupacionais dos países, foi identificado que o Brasil registrou uma queda substancial deste indicador se comparado aos demais países, apresentando a 11° pior queda (-7,0 p.p) entre os 64 países analisados no período. Com isso, o nível de ocupação pós-pandemia do país passou a ser mais baixo que os de 76,2% dos demais países da compilação.
O governo manteve durante todo o período a retórica de que era preciso “salvar empregos” ao invés de “salvar vidas”, opondo-se assim às medidas sanitárias e de isolamento social. Porém, tal narrativa mostrou-se completamente ilusória e apenas serviu como justificativa para o governo brasileiro não agir eficazmente no combate à doença e às suas consequências na vida dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros.
O resultado de quase dois anos de pandemia no campo econômico traduziu-se, assim, em desemprego, acirramento da desigualdade e perda da renda dos/as trabalhadores/as.
Trata-se de um resultado de muitas causas, como a formação histórica e social do Brasil, marcada pela desigualdade de acesso a direitos, pelo racismo e pelo sexismo, mas também por um mercado de trabalho significativamente precarizado e caracterizado por forte instabilidade e pela informalidade, bem como por um Estado pouco efetivo na redistribuição social e no enfrentamento de crises. A despeito dos significativos pactos políticos celebrados em 1988 na Constituição Federal no campo das garantias e dos direitos fundamentais, assistem-se na história recente do país sucessivos processos de sucateamento da máquina pública e graves processos de erosão de direitos. Neste último ponto, destaca-se que a partir de 2015, com a crise no mercado de trabalho, as desigualdades se aprofundaram com uma significativa inversão no investimento de políticas públicas.
Enquanto entre 2012 e 2015, os pobres apresentaram maior variação de renda e os ricos apresentaram menor variação de renda no Brasil, entre 2015 e 2018 essa tendência se inverteu e os ricos passaram a ter maior variação e os pobres menor variação (Barbosa, Ferreira de Souza e Soares (2020). Na prática, isso significa que a renda real da população mais pobre caiu vertiginosamente no período mais recente, o que implicou na ampliação das desigualdades sociais no país.
Curvas de Incidência do Crescimento (%) – Brasil, 2012-2018
Neste novo cenário, o Estado Brasileiro não atuou freando os impactos da crise na população mais vulnerável. Pelo contrário, passou a dar menos suporte para esses grupos, como fica claro com a redução da taxa de cobertura do seguro-desemprego, um impacto direto da reforma trabalhista de 2017, e pela diminuição do orçamento do Bolsa Família, assim como de seus beneficiários. Além disso, a linha de pobreza do programa foi desatualizada, o que excluiu um número grande de famílias ao acesso desse benefício. Assim, a alta vulnerabilidade vivida no Brasil nos últimos anos deve-se não apenas à crise econômica, mas também a ausência de ação do Estado em fornecer aos mais vulneráveis subsídios para que conseguissem manter níveis sustentáveis de vida (Barbosa & Prates, 2020).
Este contexto foi aprofundado durante a pandemia, como fica evidente com os novos dados sobre renda e emprego no Brasil. Quando a pandemia iniciou, em março de 2020, o nível de ocupação caiu drasticamente no país. Segundo dados da PNAD Contínua, aproximadamente 10 milhões de brasileiros ficaram sem trabalho em função do novo contexto social gerado pelo coronavírus, o que fez com que pela primeira vez na história do país, menos da metade da população em idade para trabalhar (49,5%) estivesse sem emprego.
Do mesmo modo, as taxas de desemprego atingiram em 2020 o nível mais alto observado na série histórica. Enquanto a taxa de desemprego aberto ficou em 9,6%, a de desemprego oculto (termo utilizado para definir as pessoas que não procuraram por emprego) chegou a 15,7%, o que leva a uma taxa de desemprego ampla de por volta de 25,3% (Barbosa & Prates, 2020). O resultado desse processo para as famílias brasileiras foi desastroso, vez que durante esse período a renda domiciliar per capita diminuiu, em média, 220 reais. Desse total, aproximadamente 80% se deve a queda do rendimento do trabalho.
A falta de acesso a emprego e renda atingiu principalmente uma parcela da população: homens e mulheres negras e pessoas que trabalham no setor informal. Os motivos para a sobrerrepresentação desses grupos estão ligados a questões históricas do país, como a desigualdade de acesso ao sistema educacional e as discriminações raciais, que fazem com que os negros estejam mais expostos à informalidade e a condições mais precárias de trabalho. Por outro lado, no que se refere especificamente às mulheres, em especial mulheres negras, as motivações para tanto se devem também em função da divisão sexual do trabalho e à segregação ocupacional em empresas e organizações, que as fazem ocupar trabalhos menos remunerados e importantes que os homens e mulheres brancas (Frisancho e Vera-Cossio, 2020). A desigualdade vivenciada por esses grupos durante a pandemia é tão evidente, que segundo o relatório “Nós e as Desigualdades” (2021), produzido pela Oxfam Brasil, os mais ricos conseguiram mais do que dobrar suas fortunas durante o período.
Este cenário de instabilidade econômica e hipervulnerabilidade que a população brasileira tem vivido durante a pandemia fez com que um antigo inimigo retornasse à cena pública: a fome!
Embora este não seja um problema apenas do Brasil, uma vez que conforme identificado pela ONU em seu relatório sobre insegurança alimentar (2021), a fome aumentou no mundo inteiro, tal situação é particularmente grave em nosso país. Diante do aumento da inflação e do preço dos alimentos ocorridos no último ano no Brasil, acompanhado pela diminuição da renda da população, a fome voltou a se apresentar aos lares das famílias brasileiras.
Segundo dados do relatório “Olhe para a fome” (2021), o índice de segurança alimentar caiu quase 20% no Brasil, enquanto o de insegurança alimentar duplicou em relação a 2004, ano em que começou a ser avaliado, retrocedendo a patamares do início dos anos 2000. Além do aumento do preço dos alimentos e diminuição da renda, um dos motivos apontados para o agravamento do problema foi o desfazimento de instâncias de participação popular no tema, como a extinção do Consea (conselho de segurança alimentar) no começo de 2019, pelo governo do presidente Jair Bolsonaro.
Percebe-se, assim, que com a pandemia, a situação de vulnerabilidade na qual as trabalhadoras e trabalhadores brasileiros vinham vivendo, desde a crise econômico-política de 2015, aprofundou-se drasticamente. Aliada a isso, a ausência de ação do Estado para frear as consequências da pandemia sobre a renda das famílias brasileiras também contribuiu sobremaneira para o aprofundamento das desigualdades nesse período.
A diferença, contudo, entre as outras crises e a provocada pela pandemia do coronavírus, é que nesta última perdemos não apenas empregos e renda, mas principalmente vidas, que poderiam ter sido poupadas com uma ação mais efetiva do Estado em favor da população mais vulnerável economicamente.
(1) De forma contínua, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) tem produzido informativos sobre o impacto da pandemia no mundo do trabalho, dando destaque especialmente para a questão da empregabilidade. As publicações produzidas até agora podem ser acessadas no seguinte site: https://www.ilo.org/global/about-the-ilo/WCMS_738753/lang–pt/index.htm
(2) DESIDERI, Leonardo. Após fala de Bolsonaro, OMS reitera importância do isolamento para combater o vírus. A gazeta do povo. Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/mundo/oms-bolsonaro-reitera-importancia-isolamento-coronavirus/?ref=link-interno-materia. Acesso em 29 de agosto de 2021.
Referências utilizadas
BARBOSA, Rogério; FERREIRA DE SOUZA, Pedro; SOARES, Serguei. Desigualdade de renda no Brasil de 2012 a 2019. Blog DADOS, 2020 [published 16 July 2020]. Available from: http://dados.iesp.uerj.br/desigualdade-brasil/
BARBOSA, Rogério Jerônimo; PRATES, Ian. Efeitos do desemprego, do Auxílio Emergencial e do Programa Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda (MP 936) sobre a renda, a pobreza e a desigualdade durante e depois da pandemia. DOI: http://dx.doi.org/10.38116/bmt69/notastecnicas2
FAO, IFAD, UNICEF, WFP and WHO. 2021. The State of Food Security and Nutrition in the World 2021. Transforming food systems for food security, improved nutrition and affordable healthy diets for all. Rome, FAO. https://doi.org/10.4060/cb4474en
FRISANCHO, Veronica; VERA-COSSIO, Diego. Brechas de género en tiempos de la covid-19. Blog Ideas que Cuentan, July 2020.
HECKSHER, Marcos. Mortalidade por Covid-19 e Queda do Emprego no Brasil e no Mundo. Nota Técnica – Disoc. Instituto de Pesquisas Econômicas e Aplicadas, 2021.
OIT. ILO Monitor: COVID-19 and the world of work. First edition. Updated estimates and analysis. March 2020.
OXFAM BRASIL. Pesquisa Nós e as Desigualdades. Maio de 2021.
VIGISAN. Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil. 2021.
O presente informe foi produzido por Amanda Santos e Felipe da Silva Freitas a partir das contribuições apresentadas por Ian Prates (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento – Cebrap); Jefferson Nascimento (Oxfam Brasil) durante o Webinário Pontes para a saída da crise – Impactos econômicos da pandemia: renda, trabalho e desigualdades, realizado pelo Observatório Direitos Humanos, Crise e Covid-19 sob coordenação de Paulo Mariante (Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Travestis e Transexuais), no dia 19 de agosto de 2021, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=_g5n4EDARVQ&t=3s