Perguntas sem respostas

A atuação do governo federal no contexto da pandemia da Covid-19 acumula perguntas sem resposta. Enquanto cresce desmedidamente o número de mortes e infectados, o governo mantém a política do negacionismo, impedindo que a sociedade conheça o que acontece na gestão do recurso público federal e deixando sem fiscalização o funcionamento do Sistema Único de Saúde, que é um patrimônio fundamental do povo brasileiro.

O Observatório Direitos Humanos Crise e Covid-19 está atento a esta situação e tem buscado alertar a sociedade acerca dos riscos da desinformação e da necessidade de se apurar responsabilidades dos gestores públicos no contexto de emergência sanitária. É urgente apurar e responsabilizar judicial e politicamente quem tem disseminado informações falsas sobre as formas de contágio e formas de tratamento da Covid-19, quem tem feito mau uso do recurso público, quem tem se omitido na compra de vacinas ou distribuído medicamentos nocivos à saúde da população. Para defender a vida do povo brasileiro e vencer a crise sanitária é fundamental indicar responsabilidades pela má gestão da saúde.

Para colaborar com o debate público sobre a pandemia, o Observatório lança seu terceiro informe do ano de 2021 (acesse aqui os dois informes anteriores: Informe 1 – Planos de Vacinação nos Estados, Informe 2 – Balanço da Política Nacional de Vacinas) elencando uma lista de perguntas que seguem sem respostas acerca da atuação do governo federal. A proposta é subsidiar a discussão nos Parlamentos, na mídia, nas organizações não governamentais e movimentos sociais com vistas a exigir dos Tribunais de Contas, do Ministério Público e do Poder Judiciário a adoção de medidas que interrompam este conjunto de ataques aos direitos humanos e, em especial, que garantam o direito aos serviços de saúde no contexto da pandemia.

Neste informe listamos perguntas e dúvidas que precisam ser respondidas para que o país passe a limpo os crimes cometidos contra os serviços públicos, e para que, coletivamente, sejam construídas saídas em defesa da vida e dos direitos humanos.

As falas do Presidente da República desde o começo da pandemia apontam sempre na direção da negação da gravidade do vírus e no total desrespeito às regras sanitárias e às orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS). Há relatos de que os dirigentes do governo federal, que cumpriam as regras de distanciamento social, foram hostilizados ou mesmo exonerados pelo Presidente da República e pelos seus auxiliares diretos.

Um estudo realizado pelas universidades da Carolina do Norte, nos Estados Unidos, e de Bocconi, na Itália, revelou que as cidades que registram maior aprovação ao governo de Jair Bolsonaro tiveram um aumento na taxa de contágio da Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus, 18,9% maior do que aquelas que demonstram menor apoio ao presidente, em março de 2021.

A pesquisa analisou o impacto, em 255 municípios brasileiros, das atitudes de Bolsonaro no dia 15 de março, quando o presidente subestimou a pandemia e cumprimentou manifestantes pró-governo em frente ao Palácio do Planalto, em Brasília. Este quadro é especialmente grave, sobretudo, se pensarmos na quantidade de declarações do presidente negando a importância do distanciamento social e das medidas de controle de circulação de pessoas.

A aposta em remédios que, a princípio, não tinham comprovação científica da eficácia no combate ao coronavírus, como a cloroquina e que, depois, tiveram a ineficácia comprovada, tornou-se um dos principais eixos do governo federal – que insistiu que a estratégia fosse encampada pelo Ministério da Saúde, o que causou algumas dissidências. O presidente da Anvisa, Antonio Barra Torres, declarou na CPI da Covid que, em uma reunião com ministros, chegou-se a propor a mudança da bula da cloroquina, a fim de torná-la indicada para o tratamento da Covid-19. A distribuição de medicações ineficazes, além de ter ocupado lugar nos 5 recursos financeiros que deveriam ter sido destinados a compras de vacinas, colocaram a população em risco. Diversos casos de hepatite medicamentosa causada pelo consumo do “kit covid” foram relatados por médicos e especialistas.

A primeira pessoa a ser vacinada no mundo, em Londres, recebeu o imunizante fabricado pela Pfizer, com quem Bolsonaro recusou três tentativas de negociação. Enquanto o país contabilizava dezenas de milhares de mortes, o presidente negou pelo menos 11 contatos com laboratórios produtores de insumos tecnológicos para a produção da vacina. Além disso, o Brasil entrou como retardatário no consórcio Covax Facility, responsável, entre outros, por facilitar a aquisição de vacinas para países subdesenvolvidos. A entrada no consórcio só foi sancionada pelo presidente três meses depois do lançamento do Plano Nacional de Imunização. Em dezembro de 2020, a estratégia adotada pelo Ministério de Saúde ainda era de compra em escala de medicamentos sem eficácia, como a cloroquina, com um investimento de 250 milhões de reais.

Além disso, no dia 12 de maio, foi revelado à CPI da Covid que o governo federal ignorou, por dois meses, a carta da empresa Pfizer sobre a oferta de vacinas para o Brasil. Segundo o ex-secretário de comunicação do Planalto, Fábio Wajngarten, o documento foi enviado ao presidente da República, Jair Bolsonaro; ao vice-presidente, Hamilton Mourão; ao então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello; e ao ministro da Economia, Paulo Guedes. Além deles, o chefe da Casa Civil, Walter Braga Netto, e o embaixador do Brasil para os Estados Unidos, Nestor Forster, receberam a correspondência. Nenhuma resposta foi dada à empresa.

O presidente relacionou o coronavírus à China, chegando a dizer diretamente que o vírus “veio de lá” e descredibilizou a vacina produzida pelo país, recusando-se a tomar e comprar. O presidente disse que, mesmo que o imunizante fosse aprovado pela Anvisa, ele não tomaria. A postura áspera do representante foi repetida por seu filho, Eduardo Bolsonaro, e o ministro da educação, Weintraub, chegou a dizer nas suas redes sociais que a China lucrava com a pandemia do coronavírus. As declarações, utilizadas para produzir escândalos de grande repercussão que funcionassem como uma cortina de fumaça sobre as ações e omissões do governo federal, colocou o país em um lugar de difícil diálogo com um dos principais fornecedores de imunizantes, o laboratório Sinovac. Não à toa, as negociações para aquisição da CoronaVac foram feitas pelo Instituto Butantan, sem a participação do presidente, e o imunizante foi o primeiro a ser aplicado no país. Sem a CoronaVac, o Brasil estaria ainda mais atrasado na corrida pela vacina.

Agora, há 10 mil litros de Insumo Farmacêutico Ativo (IFA) parados na China. O destino devia ser o Brasil, mas, por problemas diplomáticos, fruto das declarações xenofóbicas do presidente Bolsonaro, o governo chinês não liberou a remessa. Bolsonaro insiste em atribuir a existência do coronavírus à China e mencionou o interesse do país oriental em uma guerra química. A declaração repercutiu e o resultado é que o Instituto Butantan pode parar a produção das vacinas – que dependem do IFA da Sinovac.

Uma das estratégias de combate à disseminação do vírus é o rastreamento e o controle de contato entre os infectados. Em que pese o país ser um dos mais afetados pelo novo coronavírus e suas variantes, é, também, o que menos testa a população, como demonstrou o levantamento feito pelo Estadão a partir do banco de dados do Our World in Data.

Em grupos de instituições fechadas (asilos, prisões, unidades de cumprimento de medida socioeducativa e de medidas de segurança) as estratégias de rastreamento do vírus e de testagem em massa são ainda mais necessárias, pois nestes lugares a disseminação do vírus é ainda mais rápida e letal. A escolha do Brasil, porém, foi a de ignorar os riscos e não adquirir testes em quantidade e qualidade suficientes sequer para estes grupos.

No caso do sistema prisional, por exemplo, o acompanhamento realizado pelo observatório Infovírus: pandemia e prisões destaca que não houve, desde o começo da pandemia, uma estratégia de distribuição e aplicação de testes em massa nas unidades prisionais e que a separação de presos é precária criando um ambiente ainda mais propício a uma maior disseminação.

Em junho de 2020 uma manifestação da Organização dos Estados Americanos (OEA) apelou ao Estado Brasileiro para que adotasse medidas efetivas de proteção à população privada de liberdade, mas nada de concreto aconteceu.

Enquanto o país bateu o recorde de mortes, em fevereiro e março deste ano, apenas metade dos leitos federais de UTI estavam ativados. O repasse de verba para os Estados foi cortado, o que deixou mais de 6 mil leitos ociosos e, no total, 13 mil leitos foram desabilitados pelo governo federal no país, ou seja, perderam a vinculação com o Ministério da Saúde para recebimento de repasses.

O governo federal não coordenou a compra e distribuição de respiradores para os estados e municípios. Os estados pagaram valores variáveis, que chegaram a mais de 200 mil por equipamento, em licitações locais.

Além disso, barreiras alfandegárias criadas pelo próprio governo federal dificultaram ainda mais a atuação das unidades federativas na aquisição de insumos e equipamentos para tratamento de pacientes com Covid-19.

Conforme o Observatório Direitos Humanos Crise e Covid-19 relatou no informe sobre serviços públicos durante a pandemia, em abril de 2020, o estado do Maranhão teve que elaborar uma agressiva estratégia de diplomacia comercial para adquirir respiradores na China e evitar o colapso de saúde no estado, uma vez que não havia política federal para apoiar a compra dos equipamentos. Segundo relato das próprias autoridades de saúde do estado, foi necessário construir uma rota alternativa para a chegada dos respiradores.

O país não investiu em campanhas de informação, tendo sido necessária, em março deste ano, a tomada de decisão judicial para proibir que órgãos oficiais veiculassem informações sem base científica. Um dos escândalos foi a campanha “O Brasil não pode parar”, lançada no início da decretação da pandemia, em março de 2020, que sugeria um boicote a medidas de proteção e isolamento.

A dicotomia economia x saúde, criada e alimentada pelo governo federal para justificar sua inércia no combate ao desemprego e à fome, estimulou a exposição dos brasileiros ao vírus, deixando o povo à própria sorte. Não houve qualquer ação coordenada pelo Ministério da Saúde para distribuição de Equipamentos de Proteção Individual, como máscaras e álcool gel para a população em geral.

Em julho de 2020 o presidente da República vetou projeto de lei que obrigava o uso de máscaras em órgãos e entidades públicas e em estabelecimentos comerciais, industriais, templos religiosos, instituições de ensino e demais locais fechados em que haja reunião de pessoas. Na ocasião, também foram vetados dispositivos que obrigavam o Poder Público a fornecer o material de proteção individual à população vulnerável economicamente, e que determinava a obrigação das empresas fornecerem máscaras a seus funcionários. Os referidos vetos foram derrubados pelo Congresso Nacional em agosto de 2020.

Hospitais e cemitérios chegaram a ficar totalmente lotados em Manaus entre abril e maio de 2020. No segundo semestre do ano passado, o prefeito da capital fez uma declaração sobre a importância do lockdown e estava em articulação com o governador do Estado, quando Bolsonaro fez uma declaração pública contrária ao posicionamento e dizendo que “tá tudo dando certo”. O governo federal teve especial influência sobre as decisões tomadas no Amazonas: o ministro da saúde, Pazuello, chegou a ir em várias unidades de saúde para recomendar o uso do “tratamento precoce”. Os estudos da Fiocruz Amazônia e da Universidade Federal do Amazonas apontaram que a sensação de segurança dada pelo tratamento comprovadamente ineficaz, somado à ausência do controle de circulação de pessoas, fez com que os casos se multiplicassem exponencialmente. Resumidamente, o presidente e o ministro da saúde, aliados com o governador do Estado do Amazonas e seguidos pelo prefeito da capital, recomendaram o uso de medicamentos ineficazes e a não adoção de medidas restritivas. Os investimentos foram direcionados à compra e distribuição de cloroquina e ivermectina em massa. O resultado dessa tendência tornou-se alarmante em janeiro de 2021, quando não havia oxigênio suficiente para tanta gente internada. A falta de oxigênio impactou no tratamento intensivo de pacientes graves com covid-19 e outras comorbidades e chegou a afetar dezenas de bebês prematuros que respiravam com auxílio na incubadora. A crise, que podia ter sido evitada, comoveu o país e deixou uma marca trágica na história do Amazonas.

Aruká Juma, último ancião do povo Juma, foi tratado com o “tratamento precoce” defendido e disseminado pelo presidente e pelo então ministro da saúde, Pazuello. Ele era o último homem de seu povo e guardava as memórias sobre as formas tradicionais de vida, alimentação e comunicação dos Juma. Aruká faleceu de covid-19 em fevereiro deste ano. Sua morte tornou-se uma simbólica representação do sistemático ataque que os indígenas estão sofrendo pelo governo federal: sem proteções legais das terras, tendo que lutar contra os grileiros invasores das terras, os povos tradicionais estão submetidos, ainda, a gestão anti científica de um presidente negacionista que os colocou em situação de extremo risco na crise sanitária.

Só em março de 2020, o governo federal já tinha retirado o Bolsa Família de 158 mil famílias, sendo mais de 60% no Nordeste do país. O número de beneficiários tornou-se o menor desde 2017. Além disso, em 2021, a União, que já vinha reduzindo os repasses para programas sociais, cortou R$1,5 bilhões do programa habitacional que passou a chamar-se Minha Casa Verde e Amarela. O corte afetou principalmente as obras destinadas à “faixa 1”, formada pela parcela mais pobre da população, 12 Por que diante de uma crise sanitária o governo cortou verbas destinadas à pesquisa científica e não fez os repasses necessários ao Instituto Butantan? com renda familiar de até 2 mil reais. A gestão econômica do governo esteve, desde o início, empenhada em tirar os direitos dos mais pobres e as consequências disso já começam a ser verificadas em dados: pelo menos 19 milhões de brasileiros passaram fome no final de 2020 – período que coincide com a suspensão do auxílio emergencial – e mais da metade das famílias do país passaram por alguma insegurança alimentar.

Em meio a pandemia do coronavírus e suas variantes, momento em que ficou ainda mais evidente a importância da pesquisa científica para toda a sociedade, o governo federal aprovou um orçamento que reduziu em 34% a verba destinada para o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações. O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) vai receber apenas 18% do que recebeu em 2020. O CNPq é responsável pelo pagamento de milhares de bolsas para pesquisadores no Brasil e já informou que só vai pagar 13% das bolsas aprovadas em 2021. Isso significa que a ciência e os cientistas estão sem financiamento para desenvolverem seus trabalhos e todo o país perde em avanço técnico e científico. A medida é mais uma que caracteriza o governo negacionista de Bolsonaro. Além disso, o governo federal deixou o Instituto Butantan esperando mais de um mês pelo repasse da verba para produção da vacina, mesmo após assinatura do acordo que previa o financiamento da União. Até final de janeiro, o dinheiro não tinha chegado ao Instituto responsável pela maioria das vacinas distribuídas no Brasil, o que, como sabemos, atrapalha todo o processo.

Agora, a reitora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Denise Carvalho, anunciou que a instituição, que é uma das maiores do país, não tem como funcionar a partir de julho. O motivo é que os cortes orçamentários são tamanhos que a Universidade não consegue pagar as con-13 tas básicas, como luz, água e segurança. No total, a UFRJ é formada por 9 hospitais, 13 museus, pelo menos 1.450 laboratórios de pesquisa, 45 bibliotecas e um Parque Tecnológico. Só o Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, no campus Fundão, possui 100 leitos de UTI disponibilizados para o tratamento de pacientes graves afetados pelo coronavírus.

As perguntas sem respostas sobre a gestão do governo federal durante o enfrentamento da pandemia da Covid-19 revelam, mais uma vez, as atrocidades cometidas pela política negacionista e genocida instaurada no Brasil. Constantes são as violações de direitos e o país ultrapassou a marca de 400 mil vidas perdidas. Não podemos nos esquecer que essas mortes poderiam ter sido evitadas. O Presidente e seus aliados sempre deixaram claro que o objetivo maior é o extermínio da população brasileira, principalmente dos grupos vulnerabilizados, como a população negra, indígenas e quilombolas. Simultaneamente, estamos vivenciando o sucateamento das instituições públicas e o colapso na saúde, na educação e em setores voltados para pesquisa. A CPI da Covid surge como uma oportunidade para responsabilizar os culpados pelos descabidos e evitáveis números de mortes, pelos flagrantes ataques à política brasileira de saúde pública e pela precarização dos serviços públicos essenciais. O Brasil está desfalecendo e o povo brasileiro anseia por mudanças.