A Constituição Federal de 1988 representou um marco no país na defesa de um modelo de desenvolvimento inclusivo que priorize a garantia de direitos e um forte papel do Estado na proteção social aos grupos mais vulneráveis por meio de políticas sociais, medidas econômicas e estímulos ao desenvolvimento e à inclusão. Contudo, mesmo com inegáveis avanços nos últimos 30 anos, tais políticas padecem de problemas relativos à descoordenação e subfinanciamento e nos últimos anos, principalmente na crise deflagrada no contexto da pandemia, os problemas agravaram-se e as políticas sociais foram violentamente sucateadas.

O governo federal tem promovido o desinvestimento de verbas públicas nas mais diversas áreas de proteção social, privilegiando o Teto Fiscal disposto na PEC 95, a “Emenda Constitucional do teto de gastos públicos”, em detrimento de garantias e direitos constitucionalmente previstos gerando sérios impactos na vida da população, como apontamos no boletim sobre serviços públicos lançado em 2020.

No presente informativo, produzido pelo Observatório Direitos Humanos – Crise e Covid-19, destacamos os impactos causados pelas mudanças orçamentárias na vida da população brasileira, sublinhando as mudanças no padrão do investimento público e ressaltando seu impacto no aprofundamento da crise no país.

Uma mudança na rota dos investimentos públicos e das políticas sociais

Enquanto entre os anos 2000 e 2006 testemunhamos a adoção da reforma fiscal e do tripé macroeconômico – câmbio flexível, metas de inflação e metas de superavit – em uma política fiscal restritiva, com aumento de tributos e redução de investimentos, a partir de 2007 assistimos a uma política fiscal expansionista, baseada em investimentos, subsídios (Como o Minha Casa Minha Vida), desonerações e políticas sociais e afirmativas (Lei das Cotas, PEC das domésticas, Mais Médicos, etc.), que contribuíram para o avanço da garantia dos direitos das populações mais vulneráveis do país mas que, ao mesmo tempo, produziram insatisfação em setores do mercado e em grupos políticos de direita com controle sobre a pauta do Congresso Nacional.

A tendência de expansão do orçamento para programas sociais foi sendo progressivamente interrompida nos contextos de crise econômica e de instabilidade política, com destaque para o período posterior a 2015, ano de muitas turbulências no cenário econômico, e mais aceleradamente em 2016 a partir do impeachmente da presidenta Dilma Rousseff e da escalada de uma agenda política ultraliberal.

Mas, e quais são as interpretações destas crises?

Os adeptos do pensamento liberal, entusiastas da interrupção do mandato da presidenta Dilma e defensores das “reformas” para enxugar a máquina pública e acelerar a erosão dos direitos sociais afirmam que a crise fora produzida pelo “excessivo” investimento público que teria tomado espaço dos investimentos privados, levando a desaceleração da economia.

Segundo este grupo, o caminho para a saída da crise estava sistematizado no documento Uma ponte para o Futuro, publicado pelo PMDB em outubro de 2015 com a proposta de um novo modelo de desenvolvimento baseado na limitação do tamanho do Estado e dos gastos estatais. Este programa foi central na construção das condições políticas para o impeachment da Presidente Dilma Rousseff na medida em que sinalizou ao mercado uma proposta que limitava radicalmente a capacidade de investimento público em políticas sociais e radicalizava num modelo de rigidez fiscal que retirava do Estado qualquer força para incidir na economia por meio de medidas anticíclicas e para alocar recursos em medidas de inclusão, combate a desigualdade e assistência social.

O retrato mais fiel desta receita foi representado pela aprovação, logo após o impeachment, da Emenda Constitucional 95, conhecida como “PEC do teto de gastos públicos” ou “PEC do fim do mundo”, que alterou os arts. 106 a 114 do Ato de Disposições Constitucionais Transitórias para congelar por 20 anos (até 2036) as despesas correntes da União, submetendo direitos constitucionais a uma regra fiscal rígida em detrimento de direitos e garantias constitucionais. Foi um dos mais radicais processos de erosão de direitos sociais desde a Constituição de 1988.

A implementação da medida, no entanto, não logrou os resultados prometidos pelo governo. Ao contrário do que previam os seus proponentes, a Emenda Constitucional 95 não implicou em um “choque de confiança” entre os investidores privados, não gerou um consequente aceleramento da economia e não deflagrou a prometida recuperação acelerada da crise entre 2017 e 2019 (foi a recuperação mais lenta da história econômica do Brasil). Pelo contrário, o período pós aprovação da EC 95 foi marcado por um alto nível de desemprego, cortes de recursos para políticas sociais e uma série de “reformas modernizantes” (Reforma Trabalhista em 2017, Reforma da Previdência em 2019, etc.), que só contribuíram para alimentar o fosso das desigualdades sociais e agravar a crise de legitimidade do Estado com políticas sociais desarticuladas e sem financiamento.

E o que aconteceu no contexto da pandemia?

Com a pandemia iniciada em 2020, o quadro de restrição orçamentária passou a representar um entrave à execução das medidas sanitárias urgentes de modo que foi necessário a aprovação de um um “orçamento de guerra” no país, com suspensão das regras fiscais vigentes e liberação de recursos dirigidos para o enfrentamento à pandemia. A medida buscou viabilizar a aquisição emergente de insumos hospitalares, construção de leitos de UTIs, compra de testes para Covid-19 e outras medidas de enfrentamento ao quadro de emergência sanitária.

Todavia, estas medidas não lograram promover uma elevação dos patamares reais de investimento no Sistema Único de Saúde tampouco conseguiram promover efetivos investimentos em instituições e políticas governamentais de proteção social. Conforme demonstra o Balanço semestral do orçamento geral da União: janeiro à junho de 2021 do realizado pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC) o primeiro semestre de 2021 foi dramático em matéria de execução financeira pela União.

Os recursos investidos pelo país não acompanharam as reais necessidades vividas no período, como fica claro com a desaceleração dos gastos públicos quando o número de óbitos atingia níveis altos, superiores em mais de 70% do que em todo o ano de 2020. Dos cerca de R$ 100 bilhões liberados para o enfrentamento da Covid-19 em 2021, 44% destinaram-se à extensão do Auxílio Emergencial. Esse valor é seis vezes menor do que foi gasto com o programa no ano passado.

Recursos para a pandemia não acompanham óbitos em 2021 – março de 2020 a junho de 2021

Nos seis primeiros meses de 2021, quando a pandemia atingia seu maior pico no Brasil, o governo executou apenas o equivalente a 22% do orçamento destinado ao combate à Covid-19 no mesmo período em 2020. Entre janeiro e junho de 2020, a despesa do governo federal para este fim foi de R$ 217,73 bilhões, enquanto nos mesmos meses de 2021 este valor foi de apenas R$ 48,34 bilhões. Vale lembrar que a pandemia iniciou apenas em março do ano passado e ao final do semestre contabilizava 60 mil óbitos. No mesmo período de 2021, foram 306 mil vítimas da Covid-19.

Gastos federais para o enfrentamento da pandemia – 1º semestre de 2020 x 1º semestre de 2021

Os cortes orçamentários em 2021 se deram nas mais diversas áreas, indo no sentido contrário do que exigiria a atuação estatal nesse momento de crise, em que os mais vulneráveis às intempéries geradas pelo cenário econômico e político necessitariam de políticas de proteção social mais amplas e melhor financiadas.

Outro exemplo interessante a ser citado são os recursos para a Função Orçamentária da Educação, que abrange da educação básica ao ensino superior e também vem sendo reduzida desde 2015. A partir de 2019, primeiro ano do mandato presidencial de Jair Bolsonaro, os recursos para esta área sofreram as maiores diminuições, caindo de 134,7 bilhões de recursos dirigidos à educação pública em 2019 para 120,2 bi em 2020 e previsão de 109,6 bilhões em 2021. O cenário é desolador.

Programas como Educação de Jovens e Adultos (EJA) não tem recursos há cerca de três anos e a educação infantil, estratégia central no processo de educação e cuidado de crianças na primeira infância, foi transferida para o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, comandado por Damares Alves, passando a funcionar cum um cunho significativamente assistencialista e fora das suas reais funções dentro da estratégia nacional de educação.

A principal fonte de recurso para infraestrutura das escolas no retorno às aulas passou a ser o Programa Dinheiro Direto na Escola, que fora idealizado para financiar o desenvolvimento de pequenos projetos participativos nos estabelecimentos de ensino, fragmentando ainda mais a estratégica pedagógica das instituições. Desde agosto as aulas retornaram sem que as escolas tivessem feito qualquer investimento em infraestrutura, a não ser na construção de novos lavatórios e na disponibilização de tapetes higienizantes na porta das escolas.

Por outro lado, as políticas de proteção à crianças e adolescentes seguem sem investimento em fiscalização do trabalho infantil ou em ações de incentivo a permanência escolar. O orçamento destinado a esse público estão alocados no Programa Criança Feliz, também no Ministério presidido por Damares Alves, e encontram-se completamente afastadas dos objetivos previstos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) reduzindo-se a um conjunto de medidas de caráter meramente assistencialistas e sem conexão com o eixo estruturante da política para o setor que é a questão da garantia de direitos.

Outras áreas, como o orçamento de programas voltados à proteção da mulher – construção e manutenção da Casa da Mulher Brasileira, políticas de igualdade e enfrentamento a violência contra as mulheres, central de atendimento à mulher Disque 180/Disque 100 e funcionamento do Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres, hoje virtualmente inexistente – também sofreram fortes impactos, quando comparamos o 1º Semestre de 2020 com 1º semestre de 2021. Enquanto em 2020 o recurso autorizado para o ano todo foi de 124,3 bilhões, este caiu para menos da metade em 2021. Ainda mais alarmante são valores executados no primeiro semestre de 2020 e 2021: respectivamente 15,3 e 13,9 bilhões.

E qual a agenda para saída da crise no campo do orçamento público?

Desse modo, vemos que as mudanças orçamentárias realizadas nos últimos anos e aprofundadas durante o período da pandemia, contribuíram para o desmonte de importantes políticas sociais, que vinham ajudando a reduzir as desigualdades sociais existentes no país. Para superarmos esses problemas, ações políticas precisam ser tomadas: é necessário que o teto dos gastos públicos seja revogado, para que, assim, não haja limitação de investimentos em áreas sociais prioritárias; os orçamentos dos campos da educação, saúde e meio ambiente, entre outros, precisa ser recomposto e priorizado dentro da agenda política; e por fim, que é essencial que uma reforma tributária progressiva seja implementada, desonerando os mais pobres e onerando os mais ricos, para que assim possamos construir novamente um espaço democrático comprometido com a redução das desigualdades existentes no país.

Referências

INESC. Balanço Semestral do Orçamento Geral da União. 2021. Disponível em: https://www.inesc.org.br/wp-content/uploads/2021/07/BGU-1o-Semestre-2021_Versao-Final-1.pdf

O presente informe foi produzido por Amanda Santos e Felipe da Silva Freitas a partir das contribuições apresentadas por Roseli Faria (Coalizão Direitos Valem Mais) e Cleo Manhas (INESC), durante o Webinário Pontes para a saída da crise: Orçamento e os Efeitos da Crise, realizado pelo Observatório Direitos Humanos, Crise e Covid-19 sob coordenação de Darci Frigo (Terra de Direitos), no dia 02 de setembro de 2021, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=_g5n4EDARVQ&t=3s