A Constituição Federal de 1988 representou um marco na história brasileira no que se refere ao reconhecimento da saúde como um direito social universal e igualitário. Como resultado da luta dos movimentos sociais na Constituinte e da articulação do movimento nacional em defesa da reforma sanitária, a saúde deixou de ser um serviço público dirigido apenas a parcela da população que contribuía com a previdência social e passou a se constituir como um dos maiores sistemas unificados de serviços públicos de todo o mundo.

A virada constituída a partir da criação do SUS interrompeu a trajetória privatista na área da saúde e viabilizou o debate sobre uma nova perspectiva de acesso à saúde visando a redução do risco de doenças e o acesso universal e igualitário de toda população às ações e serviços do sistema, com ênfase em valores sociais, como equidade, universalidade e integralidade do acesso e gozo à saúde.

Por outro lado, como destacamos no informe Serviços Públicos e Direitos Humanos no contexto da pandemia, apesar do grande avanço proporcionado pela Constituição de 1988, as políticas de saúde pública seguiram, nos últimos 33 anos, pressionadas pelo sub-financiamento e pelos limites sistemáticos gerados pelo descaso dos governos e pelos ataques orquestrados pelo setor privado organizado na área da saúde. Todavia, foi no ano de 2016 que ocorreu o mais impactante ataque à política de saúde no país: a Emenda Constitucional 95, conhecida como “Teto dos Gastos Públicos”.

Aprovado após o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, o teto dos gastos desconstituiu o regime fiscal fixado pela constituição e transformou o “piso” (limite mínimo) de despesas da área social em “teto” (limite máximo) dos investimentos no setor, desorganizando por pelo menos duas décadas as ações estruturais dirigidas à estruturação das políticas públicas focadas no tema do enfrentamento à desigualdade e combate à exclusão social.

As pandemias e a gestão da saúde

Com a recente crise sanitária da Covid-19, o cenário da saúde no Brasil tornou-se ainda mais difícil: mesmo com os incrementos orçamentários advindos do orçamento de guerra aprovado no contexto da pandemia, a infraestrutura para lidar com os novos problemas foi insuficiente e uma grande parcela da população ficou desassistida, especialmente a mais vulnerável ao vírus, notadamente a população negra e periférica.

Apesar das dificuldades de obtenção de dados da Covid-19 com recorte racial, (Pilecco et al, 2020), alguns estudos indicam que há prevalência na contaminação e mortes por covid entre a população negra no país (Baqui et al, 2020). O mesmo quadro verifica-se também em países como os Estados Unidos, também marcado pelo passado escravista e pelas disparidades raciais (Negreiros e Freitas, 2021) e impactado pela condução violenta protagonizada pelos presidentes dos dois países, Trump e Bolsonaro.

O acesso desigual à saúde também se reflete nos dados da vacinação no Brasil. A Agência Pública, agência de jornalismo sobre política e direitos humanos, indicou a discrepância entre brancos e negros vacinados no país. Até 14 de março de 2021, receberam a primeira dose da vacina 3,2 milhões de pessoas que se consideravam brancas e apenas 1,7 milhões de pessoas que se consideravam negras, conforme demonstrado pelos gráficos a seguir:

Os quilombolas e a pandemia

Além disso, outra questão importante que atesta a desigualdade racial na pandemia é a situação da população quilombola. Sem acesso a políticas públicas de enfrentamento à pandemia e pressionados pelos descaso populacional, os quilombolas estão desde o começo da pandemia em situação de maior exposição e vulnerabilidade à doença, o que ensejou, por parte da Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), o ajuizamento da ADPF 742, que visava obrigar o governo federal a adotar medidas para combate e controle da Covid-19 entre a população quilombola e retomar o funcionamento das políticas sociais.

A ADPF 742 foi julgada procedente em caráter liminar por parte do STF, que determinou que as autoridades políticas brasileiras apresentassem um plano nacional de enfrentamento à pandemia, além de exigir que passassem a incluir informações referentes ao critério raça/cor nos registros de infecção e mortes pelo coronavírus. O STF reconheceu, assim, o direito à vida e à saúde das comunidades quilombolas e determinou a criação de uma comissão que tem trabalhado em torno das decisões do tribunal sobre a matéria.

Pontos para seguir pensando sobre racismo e saúde na pandemia

Desse modo, vemos que quando se trata da saúde da população negra brasileira, ainda temos muitos obstáculos a enfrentar. Infelizmente, a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, criada em conjunto com organizações da sociedade civil e movimentos negros organizados, com o objetivo de atender as necessidades específicas dessa parcela da população, aprovada em 2006 e oficializada em 2009, segue sem a completa implementação. Tal política poderia ser um dos caminhos possíveis para o enfrentamento às necessidades e demandas de saúde da população negra brasileira e poderia indicar caminhos para enfrentar a pandemia e fortalecer o SUS.

Para superar esses problemas e os demais que vivemos na saúde no Brasil hoje, algumas ações são necessárias. Em primeiro lugar, é urgente que a Emenda Constitucional 95, mais conhecida como “Teto dos gastos públicos”, seja revogada e que seja retomado o debate sobre a quantidade e a qualidade do gasto público em saúde no país. Além disso, é também necessário frear os interesses corporativos das grandes empresas de saúde para barrar os retrocessos em voga no Brasil e iniciar uma caminhada de retorno aos preceitos determinados por nossa Constituição.

¹ OBSERVATÓRIO DH e Covid. Serviços Públicos e Direitos Humanos no contexto da pandemia, Disponível em: https://observadhecovid.org.br/noticias/servicos-publicos-e-direitos-humanos-no-contexto-da-pandemia-no-brasil-2/



Referências utilizadas

AGENCIA PUBLICA. Brasil registra duas vezes mais pessoas brancas vacinadas do que negras. Março de 2021. Disponível em: https://apublica.org/2021/03/brasil-registra-duas-vezes-mais-pessoas-brancas-vacinadas-que-negras/

BAQUI, P. et al. Ethnic and regional variations in hospital mortality from Covid-19 in Brazil: a cross-sectional observational study. Lancet Global Health, v. 8, n. 8, July 2020.

FREITAS, Felipe; NEGREIROS, Dalila. TRUMP E BOLSONARO: desinformação e racismo na pandemia de COVID-19. RTPS – Revista Trabalho, Política e Sociedade, v. 6, n. 10, p. p. 35-60, 30 jun. 2021.

PILECCO, F. B. et al. Addressing racial inequalities in a pandemic: data limitations and a call for critical analyses. Lancet Global Health, v. 12, n. 8, Sep. 2020.