Estudo realizado pelo Geledés – Instituto da Mulher Negra revela que a pandemia da Covid-19 intensificou a desigualdade na educação brasileira, sobretudo entre as famílias de meninas negras que não possuem acesso à internet 

Desde o ano passado, o Observatório Direitos Humanos Crise e Covid-19 vem realizando denúncias sobre como a pandemia tem acentuado as violações de direitos no Brasil. As instituições públicas foram afetadas e o sucateamento na educação brasileira prejudica o desenvolvimento de crianças e adolescentes negros.

Mas ao falarmos sobre raça, também precisamos falar sobre gênero para entendermos a profundidade dos problemas educacionais no país. As meninas negras já estavam invisibilizadas no acesso à políticas públicas num contexto anterior à pandemia. Com base no Anuário Brasileiro da Educação Básica de 2018, a organização “Todos pela Educação”, revelou que apenas 32% de crianças negras de 0 a 3 anos estavam matriculadas em creches, ao passo que esse percentual chega a 39% de crianças brancas. No Ensino Fundamental, embora as taxas de matrícula sejam equivalentes para negros (97,7%) e brancos (98,3%), no 5º ano apenas 51% dos negros apresentam proficiência adequada em língua portuguesa, enquanto para os brancos este indicador é de 70%. No Ensino Médio, as disparidades de frequência escolar voltam a aparecer: apenas 64,3% dos adolescentes negros de 15 a 17 anos estavam matriculados no Ensino Médio, enquanto 75,4% dos brancos do mesmo grupo de idade frequentavam este nível de ensino; na faixa etária até 19 anos, apenas 55% dos jovens negros haviam concluído o Ensino Médio, sendo que 73,7% dos brancos na mesma faixa etária tinham finalizado este nível de ensino.

Com a chegada da pandemia, a necessidade de distanciamento social intensificou a sobrecarga nas atividades domésticas entre as crianças negras, principalmente entre as meninas, interferindo diretamente no desenvolvimento escolar, pois as horas que deveriam ser dedicadas aos estudos se converteram em tarefas domiciliares. Além disso, a educação à distância é algo inadequado, uma vez que suas famílias não possuem renda para compra de aparelhos eletrônicos e acesso à internet. É o que mostra o estudo A educação de meninas negras em tempos de pandemia: O aprofundamento das desigualdades”, publicado pelo Geledés – Instituto da Mulher Negra. 

Sob coordenação de Suelaine Carneiro, coordenadora do Programa de Educação e Pesquisa do Geledés, o documento aponta a discrepância no acesso às atividades escolares em 2020 (PNAD/COVID-19). Em setembro, 6,4 milhões de estudantes, ou 13,9% do total de matriculados, não tiveram contato com as atividades escolares no Brasil. O mesmo levantamento mostrou que estudantes negros e indígenas sem atividade escolar são o triplo de estudantes brancos: 4,3 milhões de crianças e adolescentes negros e indígenas da rede pública e 1,5 milhão de adolescentes brancos, respectivamente. 

Para a coleta de dados, a equipe de pesquisa entrevistou 105 famílias, 149 docentes trabalhadores/as de 116 unidades educacionais públicas de Educação Infantil, Ensino Fundamental, Ensino Médio regular e técnico, Educação de Jovens e Adultos (EJA), Educação Escolar de Pessoas Surdas e Educação escolar indígena, além de 13 organizações da sociedade civil, levando em consideração as variáveis de raça, gênero e renda.

Segundo Suelaine Carneiro, as meninas negras foram as que menos tiveram acesso ao material pedagógico e, consequentemente, não puderam realizar as atividades escolares. “É necessária a produção de agenda para a promoção da educação das meninas negras, com ações intersetoriais que revertam a situação delas e de suas famílias”. 

A pirâmide social está mais intacta do que nunca: primeiro homens brancos, depois mulheres brancas, homens negros e mulheres negras.

As pessoas negras têm o direito à infância negado e a violência contra as mulheres começa desde quando são crianças, por isso é extremamente importante assegurar a consolidação de um estatuto da criança e do adolescente que inclua o gênero, uma vez que a desigualdade afeta meninos e meninas de formas diferentes.  

Ao falar sobre as heranças da escravidão no Brasil, Viviana Santiago, responsável pela revisão interseccional de gênero, raça e etnia na UNICEF Brasil, enfatiza que, desde o nascimento, a criança negra tem sua humanidade negada. Qual é o projeto do Estado para as crianças negras? 

“Precisamos continuar lutando pelo direito de ser criança entre meninas e meninos negros em nosso país. Precisamos denunciar a sobrecarga do trabalho doméstico e violência cometida entre as meninas negras. A pandemia impacta as meninas no seu processo de saúde mental. Elas relatam crises de ansiedade, de impulso ao suicídio, dentre outros”. 

Também não podemos esquecer que a escola é o ambiente que assegura as necessidades básicas das crianças como a alimentação e a seguridade enquanto as mães e familiares precisam sair de casa para trabalhar. Como pensar em uma volta às aulas que não exponha os profissionais da educação, mas que possibilite a educação das meninas negras? Só é possível pensar em saídas de forma interseccional, ou seja, projetando ações que levem em conta a raça, o gênero e a classe.